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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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ARTIGO

Nova era da proliferação de armas começou

MARTIN AMIS

Aceitamos que existem "casus belli" legítimos -ou seja, atos ou situações "que provocam ou justificam a guerra". Essa discussão nos parece deslocada, ou levemente irreal, porque os EUA e o Reino Unido se preparam para ir à guerra por um conjunto novo de razões (parte das quais é mantida em sigilo), enquanto continuam a justificar-se com o conjunto velho de razões (que, nesse caso, não combinam umas com as outras nem sequer se sobrepõem).
Essas novas "casus belli" constituem uma reação à percepção acertada de que ingressamos numa fase distinta da história. O ataque vindouro ao Iraque talvez seja a Última Guerra da Sucessão Otomana; certamente será a Primeira Guerra da Era da Proliferação -a proliferação das armas de destruição em massa. As novas "casus belli" também foram moldadas pelo 11 de setembro.
O dia 11 de setembro de 2001 nos legou um planeta que mal reconhecemos. Em certo sentido, trouxe à tona algo que já estava presente, mas passava em grande medida despercebido desde a queda da União Soviética: a inusitada hegemonia de uma potência única. Além disso, trouxe à tona o ódio antigo, mas cada vez mais dinâmico, que essa potência desperta no mundo islâmico, onde o anti-sionismo e o anti-semitismo são exacerbados pela relação da América com Israel -uma relação que muitos no Ocidente, incluindo este escritor que vos fala, acham antinatural. Ademais, como todos os chamados "atos de terrorismo" (descritos facilmente, e sem subjetividade, como atos de violência organizada contra civis), o 11 de setembro foi um ataque à moralidade; todos nós sentimos um déficit generalizado dela. Quem, no dia 10 de setembro, poderia ter previsto que no Natal estaríamos lendo editoriais do "Herald Tribune", escritos sem qualquer senso de escândalo, sobre os prós e contras de se aplicar a tortura a "combatentes inimigos" capturados? Quem poderia prever que o Reino Unido renunciaria à doutrina do "não usar a força nuclear primeiro"? O terrorismo solapa a moralidade -e também a razão.
Osama bin Laden é um tipo humano identificável, mas em escala não-identificável. Ele é um misturador enorme, titânico. Basta ver como mexeu conosco, tanto com nossos corações quanto com nossas cabeças. Poderíamos dizer, em contrapartida, que no 11 de setembro a América foi atacada por algo ao mesmo tempo muito estranho a ela e inacreditavelmente radical. Um tipo totalmente novo de inimigo, alguém para quem a morte não é morte -e a vida tampouco é vida, mas sim ilusão, um ponto de passagem, apenas "a coisa à qual se dá o nome de mundo". Não, ninguém imaginaria que um abalo tão profundo em nossa percepção histórica e do mundo, que ainda vai reverberar por séculos, fosse absorvido sem qualquer esforço. Mas resta a desconfiança de que a América não esteja se comportando mal -que, na realidade, a América esteja agindo como alguém ainda em estado de choque.
O conceito do chamado "eixo do mal" tem uma origem interessante. Nos primeiros rascunhos do discurso do presidente Bush, o "eixo do mal" era "eixo do ódio"; a palavra "eixo" tinha sido escolhida por suas associações com o inimigo na Segunda Guerra Mundial. Até aquele momento, o "eixo do mal" consistia em apenas dois países, Irã e Iraque, sendo que o eixo original tinha três: Alemanha, Itália e Japão. Observou-se, também, que Irã e Iraque, apesar de não serem ambos países árabes, eram ambos muçulmanos. Então, a Coréia do Norte foi incluída no eixo.
Em meio a tantos fatos, nem todos os quais vêm ao caso, podemos observar que o Eixo da Segunda Guerra Mundial era uma aliança, sendo que Irã e Iraque são inimigos, cada um manchado com o sangue do outro, e que a nação morta-viva norte-coreana tem tanta vergonha dela própria que praticamente não suporta se mostrar em público. Mesmo assim, era para ser um "eixo do ódio", até que a escolha do "eixo do mal" se impôs. "Eixo do mal" lembrava o "império do mal" descrito por Reagan. Era mais aliterante. Além disso, segundo Bush, era "mais teológico".
Esse é um ponto crucial. Por que, em nosso delírio atual de fé e medo, Bush quereria que as coisas se tornassem mais em lugar de menos teológicas? A resposta é evidente, em termos humanos: falando em termos simples, isso o faz sentir-se mais à vontade com o fato de ser intelectualmente nulo. Ele quer que a geopolítica tenha menos a ver com intelecto e mais com crenças e instintos básicos -porque sabe que estes, ele possui. Neste ponto, vem à mente a anedota serializada de Bob Woodward: indagado por este sobre a Coréia do Norte, Bush deu um salto à frente e disse: "Detesto Kim Jong Il!". O presidente disse que a execração vinha de dentro dele, acrescentando, aparentemente com prazer e surpresa, que isso talvez estivesse ligado a sua religião. Aconteça o que acontecer, podemos prever que Bush se tornará, infalivelmente, cada vez mais religioso e mais teológico.


O ataque ao Iraque certamente será a Primeira Guerra da Era da Proliferação -das armas de destruição em massa

Quando, mais tarde, a figura sonambúlica de Kim Jong Il lançou sua ameaça nuclear, a frase feita, o conceito ou a política do "eixo do mal" parecia ter caído por terra, porque a Coréia do Norte mostrou estar muito mais próxima de obter as armas de destruição em massa -artefatos nucleares- do que o Iraque (e o mesmo se aplica ao Irã). Mas explicou-se, então, que a questão da Coréia do Norte era um inconveniente diplomático, enquanto o não-desarmamento do Iraque continuava a ser uma crise. A razão disso é estratégica: mesmo sem armas de destruição em massa, a Coréia do Norte é capaz de infligir 1 milhão de baixas a seu vizinho do sul e pode arrasar Seul. O Iraque não seria capaz de fazer nada em escala tão grande; logo, pode ser atacado. A Coréia do Norte seria capaz, então não pode. Os imponderáveis da era da proliferação começam a tornar-se ponderáveis. Uma vez que um país tenha realizado o trabalho arriscado e nauseabundo da aquisição, ele se torna inatacável. Uma única arma nuclear não-testada pode representar uma desvantagem, mas cinco ou seis constituem um fator de dissuasão.
A partir disso, infere-se que vamos travar uma guerra com o Iraque porque ele não possui armas de destruição em massa. Ou não possui muitas.

Vamos travar uma guerra com o Iraque porque ele não possui armas de destruição em massa; ou não possui muitas

A maneira mais segura, de longe, de descobrir o que é que o Iraque tem é atacá-lo. Então, finalmente, teremos a total cooperação de Saddam com as inspeções de armas, porque tudo o que sabemos a respeito dele nos leva a crer que ele lançará mão de todas as armas que tiver a seu alcance. O Pentágono deve estar mais ou menos convencido de que Saddam possui menos do que um número crítico xis de armas de destruição em massa. Se não estivesse, não o atacaria.
Todos os presidentes americanos -e todos os candidatos presidenciais- precisam ser religiosos ou fazer de conta que são. Mais especificamente, precisam ser cristãos da vertente conhecida como a dos "renascidos", ou seja, que tiveram a revelação de Cristo em suas vidas e se sentiram nascidos outra vez em Cristo. Bush, com seus cafés da manhã de oração semi-obrigatórios e todo o resto, não está fazendo de conta que é religioso. "O Deus amoroso que existe por trás da vida e de toda a história", "a dádiva da liberdade que o Todo-Poderoso ofereceu ao mundo", "minha aceitação de Cristo" -todas essas frases que Bush já proferiu constituem "uma parte integral de minha vida". E também da nossa, neste Novo Século Americano.
Um dos artefatos expostos na mesquita de Umm al Maarik, no centro de Bagdá, é uma cópia do Alcorão escrita com o sangue de Saddam Hussein (ele doou 24 litros para isso, ao longo de três anos). No entanto esse é apenas o mais espetacular dos gestos que Saddam faz periodicamente em direção aos mulás. Na realidade, ele é e sempre foi um líder secularista -na verdade, de acordo com Bin Laden, um infiel. Embora não exista no Capitólio nenhuma Bíblia escrita com o sangue de George W. Bush, somos obrigados a aceitar o fato de que Bush é mais religioso do que Saddam. Dos dois presidentes, ele, nesse ponto, é o mais psicologicamente primitivo. Ouvimos falar da "texanização" bem-sucedida do Partido Republicano. E o Texas, às vezes, não lembra um país como a Arábia Saudita, com seu enorme calor, sua riqueza petrolífera, seus templos repletos e suas execuções semanais?
A proximidade da administração atual com a direita religiosa também conduz, por um caminho bizarro, ao fortalecimento ainda maior do lobby israelense.
Inacreditavelmente, a doutrina do cristianismo renascido insiste em que é preciso dar apoio incondicional a Israel, não por esse país ser a única semidemocracia de sua região, mas porque é o país que vai abrigar a segunda chegada de Cristo. O Armagedon está previsto para acontecer perto da colina de Megiddo (onde, há poucos meses, um ônibus israelense foi explodido por outro tipo de crente, num atentado suicida). O Êxtase, a Adversidade, o Acorrentamento do Anticristo -não está claro até que ponto Bush acredita nessa bobagem toda (se bem que Reagan acreditasse em tudo). V.S. Naipaul descreveu o impulso religioso como a incapacidade de "contemplar o homem como homem", responsável perante ele mesmo e não protegido por um poder superior. Podemos enxergar isso como fraqueza; Bush, de forma perigosa, o vê como força.
Mesmo uma análise superficial da personalidade de Saddam Hussein nos leva a crer que ele jamais irá se desarmar por completo, não mais do que escolheria voltar atrás até sua infância e caminhar descalço e seminu pelas ruas de Tikrit. Ele se lançou no caminho que pretendia seguir quando, em 1991, nomeou seu filho mais jovem (e menos sanguinário), Qusay, para a presidência do Comitê de Operações de Ocultamento. O ataque ao Iraque está previsto para custar aos EUA 0,5% de seu PIB; as guerras de Saddam e as sanções subsequentes custaram ao Iraque mais ou menos 20 anos de PIB, de acordo com a revista "The Economist". Essas são as prioridades de Saddam. Já esteve ao seu alcance aliviar o empobrecimento de seu povo. Em lugar disso, instalou um sistema de paranóia, banditismo e cleptomania crônicos.
É importante lembrar que, apesar de seu gosto por medalhas e uniformes de camuflagem (sem falar em administrar seus exércitos pessoalmente, e mal), Saddam nunca foi militar. Ele ascendeu no mundo dos torturadores nos anos 60, criando a polícia secreta do partido Baath, a Jihaz Haneen ("instrumento do anseio") e instalando-se no Qasr al Nihayah ("Palácio do Fim"), possivelmente o local mais temido no Iraque até ser demolido, após uma tentativa de golpe pelo inquisidor-chefe, Nadhim Kazzar, em 1973.

Bush é mais religioso do que Saddam; dos dois presidentes, ele, nesse ponto, é o mais psicologicamente primitivo

Os anos de experiência prática que Saddam ganhou nas masmorras o distinguem dos outros grandes ditadores do século 20, nenhum dos quais tinha tanto pendor por meter a mão na massa. As normas que regem seu regime foram moldadas por esse seu gosto pela "massa" -sua intimidade negativa fascinada com o corpo humano, seu conhecimento especializado da dor humana. Chama a atenção, também, a maneira rotineira pela qual os organismos de Saddam utilizam o amor de família como instrumento adicional de tortura.
Aqui, em termos morais, ingressamos decididamente no Palácio do Fim, quando o interrogador manda um filho ser colocado dentro de um saco cheio de gatos mortos de fome. Eu disse anteriormente que nem todos os objetivos da guerra lançada pela América foram declarados. A resposta franca à pergunta "por que agora?", por exemplo, seria a mistureba de sempre, algo como: a) impedir que Saddam adquira mais armas de destruição em massa, b) em tempo para a próxima eleição, e c) antes de o calor ficar forte demais. Sem sua guerra, é evidente que Bush não permaneceria no poder por mais de um mandato; e ele ouve seu orientador político, Karl Rove, com pelo menos tanta atenção quanto a que dedica a Donald Rumsfeld.
A motivação adicional, bolada em institutos de análises e cafés da manhã de oração, é, sinto dizer, de tendência visionária. Já se observou que grande parte da riqueza do mundo se encontra nas mãos de regimes corruptos, incultos e, sobretudo, indefesos. A guerra, na visão deles, não será tanto uma apropriação de petróleo quando uma ramificação natural do poder puro: um destino manifesto manifestado, para o bem de todos.
Tony Blair deve ter sabido que a guerra era inevitável já há mais de um ano, quando Bush, com leviandade vulgar, começou a falar em "apagar Saddam". No passado, Blair sempre foi intransigente com relação ao Iraque, assim como a França sempre, e de maneira venal, foi permissiva (já em meados dos anos 70 Jacques Chirac era conhecido como "Monsieur Iraq"). De modo mais geral, talvez ele ache que os interesses britânicos sejam mais bem atendidos se o Reino Unido continuar a cavalgar sobre o elefante americano, ao mesmo tempo em que anuncia para quem quiser ouvir sua emancipação da influência da Europa, e também que o isolamento total de Washington iria apenas acirrar o caldo interno de insegurança e messianismo de Bush.
Existem duas regras da guerra que ainda não foram invalidadas pela nova ordem mundial. A primeira delas diz que o país beligerante precisa ter razoável certeza de que suas ações vão melhorar a situação; a segunda é que o país beligerante também precisa estar mais ou menos certo de que suas ações não irão tornar as coisas piores do que já estão. A América talvez possa afirmar estar obedecendo à primeira regra (embora admitindo que a melhora talvez seja apenas local e de curto prazo). Mas ela não pode sequer começar a satisfazer à segunda.
Podemos imaginar todo um caleidoscópio de eventualidades pavorosas: um ataque com armas de destruição em massa contra Israel e uma resposta israelense também com armas de destruição em massa (possivelmente nucleares); uma guerra civil no Iraque e fora dele, juntamente com toda espécie de desastres humanitários; revoluções fundamentalistas no Egito e na Jordânia, e, inevitavelmente, uma geração adicional de terroristas saída do islã militante. Enquanto isso, o bom senso afirma calmamente que uma versão ampliada do arranjo atual (inspetores, monitores, exposição plena à opinião mundial) basta para conter e castrar Saddam até o momento em que a pressão crescer a ponto de dar lugar a um golpe, e, também, que a chamada "guerra ao terror" só pode começar com o desmonte dos assentamentos nos territórios ocupados por Israel.
Mas o impulso necessário já foi dado, e o primeiro desastre humanitário será, obviamente, a própria guerra.
"Ó povo do Iraque ... Por Deus, eu o descascarei como se fosses casca de árvore, o amarrarei como se fosses um feixe de varas, o açoitarei como se fosses camelos que se desviaram do caminho. Por Deus, o que eu prometo, eu cumpro; o que planejo, realizo; o que meço, decepo." Poderíamos imaginar Saddam Hussein resmungando essas palavras quando assumiu a Presidência, em 1979. É com cansaço e vergonha que as ouvimos saídas da boca de nossos próprios líderes, em diversas versões codificadas, ecoando o que foi dito no ano de 694 por Al Hadjadj, o então recém-chegado governador do Iraque. E o que ele mediu ele decepou, sim.

Martin Amis, escritor inglês, é autor de "Água Pesada" e "A Informação" (ambos da Companhia das Letras), entre outros

Tradução de Clara Allain



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