São Paulo, domingo, 9 de maio de 1999

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Aliados já não sabem como vencer a guerra

FREDERICK FORSYTH
especial para a Folha

O objetivo de se travar uma guerra é um, e um só: vencer. Para isso é preciso, em primeiro lugar, responder a uma série de perguntas muito difíceis. Foi a recusa da Otan em enfrentar as perguntas que levou à confusão que agora nos confronta.
A primeira pergunta tem de ser: "Por que você vai travar uma guerra? Qual, exatamente, é sua motivação?" Se você mesmo foi atacado, a resposta é clara: autodefesa. Se um amigo ou aliado foi atacado, ela será "solidariedade". Se um tirano invadiu um país vizinho de enorme importância estratégica para você (Kuait), a resposta é: o interesse vital nacional. Nenhuma dessas se aplica a Kosovo.
Existe, porém, uma quarta: compaixão humanitária pura e simples. Em certas circunstâncias ela é totalmente justificável. Que não reste dúvida alguma: nos dez anos em que está no poder, Slobodan Milosevic já provocou mais genocídio real do que qualquer líder europeu desde 1945. Em sua busca por uma Grande Sérvia etnicamente homogênea, ele vem espalhando morte, doença, fome, sofrimento, dor e exílio por toda a antiga Iugoslávia.
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Genocídio O genocídio é um palavrão que, hoje em dia, nos chega mascarado por trás do eufemismo da "limpeza étnica". Você pode conduzi-lo de cinco maneiras. Pode massacrar suas vítimas todas, eliminando até o último homem, mulher e criança. Pode destruir todo o sistema vital, até que elas fujam, buscando esconderijo nas florestas e montanhas, onde a natureza completará o serviço com a ajuda da fome, do frio e das doenças. Pode forçá-las a buscarem exílio fora de suas fronteiras, de modo que uma diáspora mundial e permanente garanta que sua nação nunca mais volte a existir. Pode forçá-las a trabalhar até morrer em campos de trabalho escravo, ou, ainda, esterilizar ou eliminar os homens jovens, para que eles não possam mais procriar.
Milosevic inflige os três primeiros métodos sobre os kosovares.
Não há novidade alguma nisso. Os "pogroms" de kosovares começaram logo após sua chegada ao poder, há dez anos, e foram se intensificando nos últimos três.
Há cem dias, agentes britânicos e americanos em Belgrado mostraram a seus chefes políticos provas praticamente conclusivas de que Milosevic pretendia concluir o trabalho na primavera e verão deste ano, realizando a solução final.
Foi por isso que Clinton e Blair convenceram os líderes da Otan de que não poderíamos ficar parados. Chegamos à segunda pergunta: qual é o objetivo do exercício, ou seja, qual é o desdobramento final que se tem em vista? É aqui que as coisas já deram errado. Nos disseram que iríamos impedir a destruição da população kosovar. Não o fizemos.
Os kosovares estão sendo destruídos sistematicamente, enquanto grupo étnico capaz de se perpetuar, no próprio momento em que você lê estas linhas. Nos disseram que a guerra forçaria Milosevic a concordar com os termos do acordo de Rambouillet, que ele rejeitara anteriormente. Mas esses termos previam que Kosovo permanecesse parte da Iugoslávia, sob o domínio de Milosevic.
Depois do que já aconteceu, todo o mundo sabe que não existe a menor chance de que os kosovares retornem para suas casas sob essas condições, e nós tampouco poderíamos obrigá-los a isso. Então o acordo de Rambouillet é letra morta; hoje, só um mini-Estado kosovar separado, com fronteiras defensíveis e proteção da Otan, seria o suficiente. Assim, o "objetivo do exercício" já é completamente diferente -e, para Belgrado, totalmente inaceitável.
A concordância de Belgrado está fora de questão. Para que a declaração de Blair de que "nossa única saída é a vitória" não perca o sentido, temos de pensar em derrotar a Sérvia, não em convencê-la.
E o que dizer da terceira pergunta -exatamente como você vai chegar a esse desdobramento final? É nesse ponto que políticos sábios chamariam os generais e ouviriam o que eles tivessem a dizer. Clinton e Blair não o fizeram.
Eles tinham à sua disposição os homens que venceram nas Falklands (Malvinas), partindo de uma desvantagem espantosa, e que venceram no Iraque em apenas quatro dias. Mas eles -eles que nunca vestiram um uniforme, dispararam um tiro, se esquivaram de uma bala ou pilotaram um avião- se negaram a ouvir.
Em questão de horas, eles cometeram quatro erros terríveis. O primeiro foi se convencerem de que os bombardeios aéreos dariam conta do recado. A seguir, anunciaram que nenhum soldado aliado iria atravessar a fronteira. Foi a mesma coisa que dizer a Milosevic: "Se você se apressar, provavelmente dará conta do serviço". Ele foi adiante, o que não chega a surpreender. Em terceiro lugar, se recusaram a esperar 60 dias, até o céu limpar. Resultado: 60% de nossas missões aéreas foram abortadas devido às nuvens baixas. Nos céus de Kosovo, nossos pilotos estão tentando localizar tanques e canhões camuflados. Na condição de ex-piloto, posso atestar que é impossível. Os esquadrões assassinos fazem seu trabalho sem serem perturbados, e nós chegamos ao ponto de atingir camponeses kosovares por engano.
Os políticos se recusaram a pôr de lado um único colchonete, cobertor, cozinha de campo ou barraca para a enxurrada de refugiados que inevitavelmente começariam a chegar. Os políticos erraram totalmente na interpretação que fizeram da situação Belgrado/ Kosovo. Agora nos dizem que os bombardeios contra a Sérvia vão continuar "por quanto tempo for preciso". Isso não basta.
Estamos lutando contra o relógio. Dentro de mais 40 dias, ou, quem sabe, 60, não haverá mais Kosovo para libertar.
Pior ainda: a aliança da Otan pode não durar por mais 60 dias. Em Roma, Paris e Berlim, a esquerda está ameaçando derrubar os governos (fato estranho, quando se leva em conta que combatemos um regime fascista que está cometendo massacres maciços). A Grécia está inequivocamente a favor da Sérvia -pelo menos a população. Todos os governos menos o britânico ainda se negam a acreditar no que é óbvio: que Kosovo não poderá ser libertada sem forças terrestres. Milosevic não pode capitular porque seria enforcado por seus próprios extremistas se lhes dissesse que a devastação do país se deu em troca de nada.
Só existe uma saída desse buraco infernal. Ela consiste em enviar os 40 mil voluntários kosovares jovens de volta a sua terra natal, munidos de todas as armas que conseguirem manejar; com a ajuda de pára-quedas, jogar armas para as outras dezenas de milhares de voluntários kosovares que estão escondidos nas montanhas e florestas do maciço central; emprestar a eles alguns dos homens bem treinados de nossas Forças Especiais, para atuarem como radiocomunicadores e marcadores de alvos, e lhes fornecer cobertura aérea total. Milosevic só vai negociar se sofrer baixas consideráveis e perdas de setores, como aconteceu quando concordou em negociar com os croatas em bases igualitárias.
Ao mesmo tempo, devemos exortar Moscou a desempenhar um papel relevante na criação de um novo Kosovo sob proteção da Otan e da Rússia, um Kosovo menor do que o atual, mas não mais sob a égide de Belgrado.
Só então poderemos convencer a maré humana de refugiados a voltar para casa e demonstrar que nosso sentimento humanitário é para valer, ajudando os refugiados a reconstruir sua pátria devastada.
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Frederick Forsyth, 61, inglês, é escritor ("O Dossiê de Odessa" e "O Dia do Chacal", entre outros)



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