São Paulo, terça-feira, 09 de outubro de 2001

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População no Uzbequistão se divide sobre ataque

HENRIQUE SKUJIS
DÉCIO GALINA


FREE-LANCE PARA A FOLHA, DO UZBEQUISTÃO

"América Afganistanni Bombafdemon Qilmoqda. Boshladi!" A frase exclamada pelo senhor gordo, dono do restaurante Afqonchi, foi logo traduzida para quem não entende o idioma uzbeque: "A América está bombardeando o Afeganistão. Começou!". O silêncio tomou conta da mesa no restaurante.
Sem colocar os sapatos, moradores locais e turistas se levantaram do confortável tapete colorido e deixaram para trás o plov, prato típico preparado com arroz amarelado, cenoura, carne de cordeiro, grão-de-bico e uva passa. Todos correram para a frente da única televisão com satélite de Khiza, cidade com 1.300 anos de história, localizada a cerca de 700 km da fronteira com o Afeganistão, no noroeste do Uzbequistão.
"Bush tomou a decisão errada", disse N. Atkir, um guia uzbeque de turismo que serviu no Exército Vermelho, quando a então União Soviética invadiu o Afeganistão em 1979. "O Taleban deixou claro que pode armar outros atentados terroristas como os de 11 de setembro ou ainda se vingar dos países aliados aos EUA."
O medo do ex-soldado soviético faz sentido. Logo após as primeiras investidas norte-americanas na noite do último domingo, um porta-voz do grupo islâmico radical Taleban informou que mais de 8.000 homens foram enviados a fronteira com o Uzbequistão.
Em resposta a essa manobra, o governo do presidente Islam Karimov colocou seu Exército na fronteira em estado de alerta, esvaziou alguns povoados do sul do país e reforçou a segurança na embaixada norte-americana em Tachkent, capital do país, que conquistou sua independência há apenas dez anos.
A movimentação de militares dos EUA em Tachkent nas últimas semanas já estava deixando a população apreensiva. O porteiro do hotel Sheraton falou assustado sobre os vôos rasantes de aviões de guerra no centro da capital e sobre as misteriosas saídas de oficiais durante a madrugada.
O sistema hoteleiro do país sentiu no bolso as consequências dos recentes acontecimentos. "Entre 70% e 80% dos pacotes turísticos foram cancelados", calcula o intérprete e professor de espanhol Mamurjon Inogamov, 24.
O que é uma pena. O país é endereço de algumas das cidades mais antigas do planeta e de relíquias arquitetônicas em excelente estado de conservação, como as mesquitas de Bukhara e Samarkand. Desde os tempos da rota da seda, não há quem passe por aqui sem rasgar elogios.
"Tudo que ouvi sobre Samarkand é verdade, exceto que ela é mais bonita do que eu jamais havia imaginado", disse o macedônio Alexandre, o Grande, em 329 a.C. Até o viajado Marco Polo, no século 13, elegeu a cidade como uma das mais belas do mundo.
O fato deste acervo espetacular estar a apenas 250 km da fronteira com o Afeganistão não preocupa Gularam Mashripava, 34, professora de história da Academia de Ciências Mamun, no Estado de Khorizm, no oeste do país.
"Estou tranquila quanto à segurança dentro do Uzbequistão", afirmou. "Nossos monumentos e nosso povo não correm perigo pois além do nosso Exército, temos o compromisso dos Estados Unidos de nos proteger", completou a professora.
Apesar de ser outra a represália norte-americana, Gularam acredita que, caso não morram durante os bombardeios, os afegãos morrerão de fome "pois estão isolados do mundo cada vez mais".
Já o comerciante Ismailov Yuldash, 51, dono de uma mercearia em Khiva, é favorável aos ataques ordenados por George W. Bush. Enquanto assistia às últimas notícias da emissora local em uma televisão em preto-e-branco, dizia não sentir pena dos civis inocentes que podem morrer nos bombardeios. "Os afegãos não ligaram para a vida da faxineira que trabalhava no World Trade Center."

Vida normal
Opiniões à parte, nota-se que o Uzbequistão consegue seguir sua vida normalmente. A preocupação com uma vingança do vizinho existe. Mas "Romeu e Julieta" não saiu de cartaz no teatro Alisher Navoi, os jovens continuam soltando a voz nos karaokês espalhados pela rua Saylgoh (conhecida como a Broadway Tachkent) e os turistas que teimaram em voar para o Uzbequistão seguem se divertindo nas ruínas dos fortes erguidos no deserto Kyzylkum.
No restaurante onde a notícia da investida norte-americana caiu como uma bomba, o clima tenso foi quebrado por um uzbeque de bigode e dentes de ouro que chegou pedindo para mudar de canal: "Deixem a guerra para lá. O jogo do Brasil contra o Chile vai começar".


Os jornalistas HENRIQUE SKUJIS e DÉCIO GALINA viajaram a convite da agência Tchayka e da companhia aérea Swissair.



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