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População no Uzbequistão se divide sobre ataque
HENRIQUE SKUJIS
DÉCIO GALINA
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DO UZBEQUISTÃO
"América Afganistanni Bombafdemon Qilmoqda. Boshladi!"
A frase exclamada pelo senhor
gordo, dono do restaurante Afqonchi, foi logo traduzida para
quem não entende o idioma uzbeque: "A América está bombardeando o Afeganistão. Começou!". O silêncio tomou conta da
mesa no restaurante.
Sem colocar os sapatos, moradores locais e turistas se levantaram do confortável tapete colorido e deixaram para trás o plov,
prato típico preparado com arroz
amarelado, cenoura, carne de
cordeiro, grão-de-bico e uva passa. Todos correram para a frente
da única televisão com satélite de
Khiza, cidade com 1.300 anos de
história, localizada a cerca de 700
km da fronteira com o Afeganistão, no noroeste do Uzbequistão.
"Bush tomou a decisão errada",
disse N. Atkir, um guia uzbeque
de turismo que serviu no Exército
Vermelho, quando a então União
Soviética invadiu o Afeganistão
em 1979. "O Taleban deixou claro
que pode armar outros atentados
terroristas como os de 11 de setembro ou ainda se vingar dos
países aliados aos EUA."
O medo do ex-soldado soviético
faz sentido. Logo após as primeiras investidas norte-americanas
na noite do último domingo, um
porta-voz do grupo islâmico radical Taleban informou que mais de
8.000 homens foram enviados a
fronteira com o Uzbequistão.
Em resposta a essa manobra, o
governo do presidente Islam Karimov colocou seu Exército na
fronteira em estado de alerta, esvaziou alguns povoados do sul do
país e reforçou a segurança na
embaixada norte-americana em
Tachkent, capital do país, que
conquistou sua independência há
apenas dez anos.
A movimentação de militares
dos EUA em Tachkent nas últimas semanas já estava deixando a
população apreensiva. O porteiro
do hotel Sheraton falou assustado
sobre os vôos rasantes de aviões
de guerra no centro da capital e
sobre as misteriosas saídas de oficiais durante a madrugada.
O sistema hoteleiro do país sentiu no bolso as consequências dos
recentes acontecimentos. "Entre
70% e 80% dos pacotes turísticos
foram cancelados", calcula o intérprete e professor de espanhol
Mamurjon Inogamov, 24.
O que é uma pena. O país é endereço de algumas das cidades
mais antigas do planeta e de relíquias arquitetônicas em excelente
estado de conservação, como as
mesquitas de Bukhara e Samarkand. Desde os tempos da rota da
seda, não há quem passe por aqui
sem rasgar elogios.
"Tudo que ouvi sobre Samarkand é verdade, exceto que ela é
mais bonita do que eu jamais havia imaginado", disse o macedônio Alexandre, o Grande, em 329
a.C. Até o viajado Marco Polo, no
século 13, elegeu a cidade como
uma das mais belas do mundo.
O fato deste acervo espetacular
estar a apenas 250 km da fronteira
com o Afeganistão não preocupa
Gularam Mashripava, 34, professora de história da Academia de
Ciências Mamun, no Estado de
Khorizm, no oeste do país.
"Estou tranquila quanto à segurança dentro do Uzbequistão",
afirmou. "Nossos monumentos e
nosso povo não correm perigo
pois além do nosso Exército, temos o compromisso dos Estados
Unidos de nos proteger", completou a professora.
Apesar de ser outra a represália
norte-americana, Gularam acredita que, caso não morram durante os bombardeios, os afegãos
morrerão de fome "pois estão isolados do mundo cada vez mais".
Já o comerciante Ismailov Yuldash, 51, dono de uma mercearia
em Khiva, é favorável aos ataques
ordenados por George W. Bush.
Enquanto assistia às últimas notícias da emissora local em uma televisão em preto-e-branco, dizia
não sentir pena dos civis inocentes que podem morrer nos bombardeios. "Os afegãos não ligaram
para a vida da faxineira que trabalhava no World Trade Center."
Vida normal
Opiniões à parte, nota-se que o
Uzbequistão consegue seguir sua
vida normalmente. A preocupação com uma vingança do vizinho
existe. Mas "Romeu e Julieta" não
saiu de cartaz no teatro Alisher
Navoi, os jovens continuam soltando a voz nos karaokês espalhados pela rua Saylgoh (conhecida
como a Broadway Tachkent) e os
turistas que teimaram em voar
para o Uzbequistão seguem se divertindo nas ruínas dos fortes erguidos no deserto Kyzylkum.
No restaurante onde a notícia
da investida norte-americana
caiu como uma bomba, o clima
tenso foi quebrado por um uzbeque de bigode e dentes de ouro
que chegou pedindo para mudar
de canal: "Deixem a guerra para
lá. O jogo do Brasil contra o Chile
vai começar".
Os jornalistas HENRIQUE SKUJIS e DÉCIO GALINA viajaram a convite da
agência Tchayka e da companhia aérea
Swissair.
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