São Paulo, sábado, 09 de outubro de 2004

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ÁSIA

Pela primeira vez, o país escolherá seu presidente pelo voto direto; Karzai, atual ocupante do cargo e apoiado pelos EUA, é favorito

Afeganistão realiza eleição histórica hoje

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Após mais de 20 anos de guerras, mais de 10,5 milhões de eleitores afegãos (40% mulheres) escolherão hoje, por voto direto, seu próximo presidente, cujo mandato será de cinco anos. Como as eleições legislativas só ocorrerão em 2005, o vencedor deverá ter poder suficiente para definir o futuro próximo do país asiático.
O pleito, de acordo com especialistas consultados pela Folha, tende a ser um plebiscito sobre a atuação do presidente afegão, o pashtu Hamid Karzai, o grande favorito nas pesquisas. Se ele obtiver menos de 51% dos votos, todavia, a eleição será decidida num segundo turno, o que poderá constituir fonte de instabilidade.
"Se a provável eleição de Karzai não for manchada por fraudes e ocorrer no primeiro turno, haverá certa estabilidade política, pois ele terá legitimidade. Por outro lado, se o presidente tiver menos de 51% dos votos, a situação será mais complexa", analisou Olivier Roy, autor de, entre outros, "L'Asie Centrale Contemporaine".
Quando assumiu o poder após a deposição do Taleban -que dava abrigo a Osama bin Laden, responsável pelo 11 de Setembro-, ocorrida por conta da invasão do Afeganistão liderada pelos EUA e pela Aliança do Norte -que reunia senhores da guerra e combatentes islâmicos que lutaram na guerra contra os soviéticos (1979-1989)-, Karzai foi forçado a constituir um governo de coalizão, com a anuência americana.
"Em 2002, Karzai tinha a ingrata tarefa de buscar unir o país em torno do governo central. Obviamente, os senhores da guerra oriundos da Aliança do Norte eram uma força incontornável", disse Morgan Courtney, do Projeto para Reconstrução Pós-Conflito, do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (EUA).
"O único modo encontrado por Karzai para que eles aceitassem abrir mão de parte de seu poder local foi colocá-los em postos importantes do governo central. Porém isso só serviu para consolidar o poder dos líderes guerrilheiros."
Recentemente, Karzai lançou uma campanha para abrandar influência de alguns dos mais poderosos senhores da guerra. Assim, Ismail Khan, um dos homens mais ricos do país, foi retirado do posto de governador da Província de Herat (próxima ao Irã).
Para Brad Davis, diretor para a Ásia da Human Rights Watch (HRW), "esse esforço ainda é muito limitado, embora seja bem-vindo". "Os senhores da guerra ainda são muito fortes no interior do Afeganistão e, mesmo deixando postos governamentais, mantêm-se bastante influentes, muitas vezes como barões da droga."
As duas vezes em que Karzai e seu candidato a vice, Ahmed Zia Massoud, deixaram a capital, Cabul, para fazer campanha terminaram em tentativas de assassinato, o que ilustra a gravidade da situação no interior do Afeganistão.
Também vale ressaltar que, neste ano, a receita da droga será, de acordo com a ONU, de cerca de US$ 2,3 bilhões, enquanto a receita fiscal do governo central não chegará a US$ 300 milhões.
Ademais, conforme salientou John Sifton, também da HRW, alguns senhores da guerra tentam dominar a sociedade civil afegã. "O caso mais claro é o do ministro da Defesa, [Mohammad Qasim] Fahim, que é o líder da organização político-militar mais importante do Afeganistão, a Shura-e Nazar. Trata-se de uma das pessoas mais influentes do país."
Fahim apóia a candidatura do ex-ministro da Educação, o tadjique Yunis Qanuni, o principal adversário de Karzai no pleito. Para Roy, se eleito, o presidente poderá ser compelido a fazer uma aliança com ambos para poder governar.

Campanha insegura
Embora curta -três semanas-, a campanha eleitoral foi mais ardente do que era esperado. "Todos os candidatos tiveram acesso à TV e puderam expor suas idéias. No entanto isso quase não ocorreu, pois, como no Ocidente, eles passaram a maior parte do tempo a acusar os adversários", avaliou Atiq Rahimi, escritor e cineasta afegão. Ele vive na França, mas passou três meses no Afeganistão em 2003 e em 2004.
Rahimi acrescentou, contudo, que a "população não está tão animada com o pleito". "A votação é, sem dúvida, histórica, e as pessoas sabem disso. Quando estive no país em julho, porém, percebi que a maior parte dos afegãos não se ilude quanto às perspectivas para o futuro, que restam sombrias."
Com efeito, embora a situação de segurança seja relativamente boa em Cabul, onde há 8.000 soldados da Otan e 5.000 militares afegãos, o interior do país continua "perigoso", segundo Manoel de Almeida e Silva, diretor de comunicação da missão da ONU.
Na região fronteiriça com o Paquistão, por exemplo, numa verdadeira "zona de guerra", de acordo com Courtney, há 18 mil militares dos EUA que atuam no combate ao Taleban e à Al Qaeda. Todavia a campanha de intimidação e de atentados prometida pelo Taleban não se concretizou, e os ataques terroristas foram poucos.
Mesmo assim, para Davis, "as perspectivas são pouco alentadoras". "O extremismo islâmico e a droga são graves ameaças à estabilização a médio e longo prazos."
Para George W. Bush, porém, a realização do pleito é uma vitória. "O sucesso da eleição afegã é vital para as aspirações eleitorais de Bush nos EUA, pois mostrará que "a democracia é possível num país muçulmano'", afirmou Courtney.


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