São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

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ZIMBÁBUE

Para especialista de Harvard, silêncio sul-africano sobre ação do presidente cria sensação de que a democracia é dispensável

Omissão dá força a Mugabe, diz analista

PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO

A decisão da Comunidade Britânica de não tomar medidas contra o presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, e a fraca reação da África do Sul ajudaram a criar uma sensação de que a democracia pode ser dispensada no continente africano.
A opinião é de Robert Bates, 59, professor de ciência política na Universidade Harvard (EUA).
"Espero que a África do Sul se envolva mais. Eles temem um envolvimento maior porque isso terá um preço", diz Bates, especialista em política africana e reforma governamental e um dos líderes do Projeto de Crescimento da África, que tem a sua base em Nairóbi (Quênia). A proposta do projeto é analisar a experiência de 36 países africanos desde a segunda metade do século 20 e apresentar estratégias de desenvolvimento.
Ele, porém, não poupa críticas ao regime do Zimbábue: "O regime mais repressivo [da África" atualmente é o de Mugabe".
Leia a seguir trechos da entrevista concedida por Robert Bates à Folha.

Folha - A cúpula da Comunidade Britânica decidiu não adotar medidas contra Mugabe. Em vez disso, diversos Estados africanos, com o Zimbábue à frente, vêm acusando o Reino Unido de neocolonialismo. É uma tentativa de reduzir as críticas a esses regimes?
Robert Bates -
É lógico que sim. No Zimbábue, por exemplo, Mugabe está tratando o assunto como uma questão racial para evitar um debate sobre seu próprio desempenho. É um modo de tentar obter solidariedade em casa, o que não está ocorrendo, e de angariar apoio entre outros Estados africanos. Isso está funcionando melhor do que imaginávamos.

Folha - Segundo Mugabe, o Reino Unido estaria ajudando seus oposicionistas de forma direta. Como os governos europeus interferem nas eleições africanas?
Bates -
As embaixadas ocidentais no Zimbábue têm a intenção de promover a democracia, penso eu. Isso implica apoiar eleições competitivas, o que certamente Mugabe não quer.
Mas os estrangeiros também sabem que, caso se envolvam demais, isso seria contraproducente. Por isso, não agem além dos limites. Mas eles acreditam ter o direito de saber se as eleições foram realizadas justamente. Após as eleições zimbabuanas, se perceberem que houve uma falta no campo, vão erguer o cartão vermelho. Não creio que o Reino Unido esteja fornecendo dinheiro para a oposição. Tenta observar cuidadosamente o processo político e proteger os oposicionistas de intimidação.

Folha - O Zimbábue vai retomar em breve as negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com o Banco Mundial que foram suspensas no ano passado devido a divergências em relação à política de Mugabe, incluindo as invasões de terras. Qual o efeito da pressão exercida por essas organizações sobre líderes africanos?
Bates -
Quando essas organizações acreditam que a repressão contra oposicionistas faça parte das razões para um declínio político ou econômico, com certeza têm interesse em estabelecer condicionantes políticas como um dos fatores para aprovar pacotes de assistência.
Por que deveriam emprestar dinheiro ao país se o modo como Mugabe governa é uma boa razão para não fazer negócio com ele?

Folha - Sanções econômicas podem ajudar o processo político?
Bates -
Em alguns casos, pois fica claro o descontentamento com a situação política. O problema é a manipulação por parte de líderes para proteger quem interessa. E as sanções muitas vezes atingem o povo sem afetar o governo.

Folha - A influência do Reino Unido e da França sobre a África cresceu bastante nos últimos anos, segundo diversos especialistas...
Bates -
Sim, Tony Blair esteve recentemente na África, e não há dúvidas de que os britânicos estão com uma política mais ativa nos últimos anos. Seus objetivos ainda não são totalmente claros, mas há muitas forças na África que precisam de ajuda externa. A não ser que esses governos desistam de se manter no poder para sempre, a oposição estará insegura e, consequentemente, buscará proteção internacional contra forças domésticas de repressão.
Com certeza, hoje há um envolvimento maior por parte do exterior na política africana do que havia dez anos atrás. Mugabe aproveita para falar em um ressurgimento do imperialismo...

Folha - Quais os exemplos mais positivos de democracias ou de países que tendem a se tornar democracias na África?
Bates -
Cito os dois casos mais evidentes: Maurício e Botsuana. Outros países às vezes adotam o sistema democrático temporariamente e depois o abandonam, como Gâmbia. Benin vinha mostrando uma tendência democrática também.

Folha - E a África do Sul? Aparentemente está colaborando menos com a transição política em outros países do que se esperava...
Bates -
Mugabe não está tendo problemas com seus assassinatos, e o único país que poderia se opor a isso é a África do Sul. Talvez eles tenham compreendido que cometeram um erro ao não condenar o que vem acontecendo.
Outras países da região, especialmente Zâmbia e Maláui, reverteram suas reformas democráticas. Há uma sensação na região de que a democracia pode ser dispensada sem medo de que a África do Sul ou algum país estrangeiro manifeste muita preocupação.
Espero que a África do Sul se envolva mais. Eles temem um envolvimento maior porque isso terá um preço. Podem, porém, começar a achar necessário organizar a vizinhança em algum momento quando o país deixar de ser visto como um lugar seguro devido aos grupos fora de controle na região.

Folha - Quais são os exemplos mais graves de repressão política no continente africano?
Bates -
O regime mais repressivo atualmente é o de Mugabe. A situação no Congo (ex-Zaire), em Serra Leoa e na Libéria também demanda uma atenção especial. De qualquer forma, algumas vezes é preferível um governo repressor do que nenhum governo.

Folha - Quais os principais inimigos da democracia na África, onde a guerra ainda predomina em ao menos 15 países?
Bates -
Em países em guerra, a prioridade é a estabilidade, não a democracia. O importante nesse caso é desarmar milícias locais e obter uma pacificação. Após resolver esses problemas, podem preocupar-se com a democracia.

Folha - A União Africana pode ajudar a promover transições democráticas?
Bates -
Gostaria que sim, mas realmente fiquei decepcionado com a conduta da organização até agora. Seu próprio líder é um rufião. Que tipo de mensagem estão tentando passar à comunidade internacional? Deveriam apoiar forças políticas progressistas. Lamento que a diplomacia seja usada apenas para conservar o governo no poder indefinidamente.

Folha - O presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, prometeu não se candidatar às próximas eleições. Analistas afirmam que a morte de Jonas Savimbi favoreceria a retomada do processo de paz. O quadro é mais positivo?
Bates -
Não sabemos o que fez Dos Santos desistir do poder, se é realmente uma abertura ou se ele vai impor seu sucessor.
A morte de Savimbi muda o quadro radicalmente.
Há um lado positivo: Savimbi não aceitava nenhum compromisso político que não o consagrasse como presidente, o que evidentemente prejudicava a chance de paz. Por outro lado, agora a oposição está rachada, o que dificulta as negociações. Não há uma pessoa única com quem negociar. São diversos líderes.



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