São Paulo, quarta-feira, 10 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VENEZUELA

Presidente diz que, se deixar de fornecer petróleo aos americanos, governos como o brasileiro estenderiam os braços a ele

Chávez usa o Brasil para ameaçar os EUA

Juan Carlos Solorzano - 8.mar.2004/Associated Press
O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em festa pelo Dia Internacional da Mulher, em Caracas


LAMIA OUALALOU
DO "LE FIGARO", EM CARACAS

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, está no poder há cinco anos e hoje divide profundamente a população de seu país.
Questionado sobre suas ameaças de cortar o fornecimento de petróleo aos EUA, maior cliente do país, por suposto apoio de Washington à oposição, Chávez disse que "China, Europa e países da América Latina, como o Brasil, nos estendem os braços". Ele negou denúncias de que ordenou uma repressão brutal das manifestações da oposição na semana passada e admitiu que, se a oposição conseguir revogar seu mandato, sairá candidato de novo.
 

Pergunta - A oposição considera que o CNE [Conselho Nacional Eleitoral] agiu sob pressão quando deixou de validar as assinaturas que ela tinha recolhido em favor de um referendo para decidir a sua permanência no poder. Será que esse referendo ocorrerá?
Hugo Chávez -
Na América Latina, a democracia representativa foi desviada pelas elites, em proveito exclusivo delas. Foi esse fato que nos levou a introduzir na Constituição de 1999 a figura do referendo de revogação. As eleições permitem à população exprimir-se, e o referendo é a garantia de que ela possa controlar o poder. É uma espada de Dâmocles para todos os eleitos, os deputados, os prefeitos e o presidente.
Mas a oposição fraudou a coleta de assinaturas em favor do referendo, incluindo assinaturas de mortos, de menores de idade e de estrangeiros. Por esse único motivo, se o CNE fosse um árbitro inflexível, ele já deveria anular o processo inteiro. Apesar disso, respeito a decisão do conselho. Se a oposição de fato tiver reunido os 2,4 milhões de assinaturas necessários, então o referendo será organizado. Mas duvido muito.

Pergunta - Se o referendo ocorrer, e a maioria se pronunciar pela abreviação de seu mandato, o sr. deixará a Presidência?
Chávez -
Sim, naturalmente. Mas isso implica que a oposição consiga mobilizar mais de 3,7 milhões de pessoas para o dia do referendo, sendo que não conseguiu reunir 3 milhões de assinaturas em seu favor em quatro dias de coleta de assinaturas. Além disso, exige que ela seja majoritária em relação aos partidários do ""não" -aqueles que querem que eu permaneça.

Pergunta - Nesse caso, o sr. se retiraria da cena pública? Ou se candidataria à sua própria sucessão?
Chávez -
É muito provável que eu me reapresentasse. A Constituição não proíbe. Não tenho 50 anos nem a intenção de me recolher e redigir minhas memórias.

Pergunta - A oposição o acusa de ter reprimido as manifestações da semana passada, deixando um saldo de mortos, feridos e detenções políticas. O que o sr. responde?
Chávez -
Houve detenção de pessoas pegas em flagrante delito de violência ou de vandalismo. Não são presos políticos. Essas manifestações não tinham nada de pacífico. Prova disso é que, no sábado, organizaram uma passeata cujo sucesso sou obrigado a reconhecer, da qual participaram muitas pessoas, infinitamente mais do que nos dias anteriores. Não houve nem mortos nem feridos nem presos, o que mostra bem que sua estratégia, na semana passada, era a de provocar violência para dizer ao mundo que Chávez é um tirano e apelar para um golpe de Estado. Eles o fizeram em abril de 2002, tentando me derrubar, e estão recomeçando outra vez.

Pergunta - O sr. pode garantir que não ocorreu nenhum caso de abuso da força?
Chávez -
A Guarda Nacional e a Disip [a polícia política preventiva] devem defender a segurança e a Constituição, não agredir a população. Se houve abusos, posso garantir que serão investigados. Em cinco anos, nunca proibi a menor manifestação nem censurei a mídia de nenhuma maneira.
Mas se, na semana passada, a mídia -que já promove a desobediência civil- tivesse lançado um apelo à violência, sendo que já havia diversos mortos, nós teríamos estado tecnicamente prontos a cortar as transmissões. A Constituição o permite, em casos de propaganda de guerra.
Excluindo essa situação extrema, não farei nada contra a liberdade da imprensa. Mas eu também vou participar dessa batalha na mídia, mesmo que nossos meios sejam escassos. A oposição domina as principais emissoras de rádio e TV e o que ela divulga é reproduzido pela mídia internacional, como a rede CNN.

Pergunta - O sr. acusa os EUA de tentarem se livrar do sr, mas há provas nesse sentido?
Chávez -
É claro que sim. Tenho documentos que comprovam que os EUA financiaram a oposição e continuam a financiá-la, através de uma ONG como a Sumate e de outras estruturas. E, melhor do que provas, tenho as próprias declarações de todos os representantes da Casa Branca. Em janeiro, por ocasião da Cúpula das Américas, em Monterrey, George W. Bush anunciou claramente em seu discurso de abertura que continuaria a trabalhar para devolver a liberdade aos povos da Bolívia, da Venezuela e do Haiti.

Pergunta - Qual seria a motivação de Bush na Venezuela?
Chávez -
O petróleo. É em grande parte a Venezuela que ressuscitou a Opep [Organização dos Países Exportadores de Petróleo], organizando em Caracas uma cúpula dos seus chefes de Estado, que não se reuniam havia 25 anos. Resultado: o preço do barril de petróleo, que há cinco anos caiu para seu nível mais baixo -US$ 10-, hoje está num nível que considero justo, US$ 30. É exatamente isso o que os EUA não querem. Antigos conselheiros de Bush revelaram que, assim que chegou ao poder, já tinha decidido atacar o Iraque, para garantir o fornecimento petrolífero vindo do Oriente Médio. Mas, antes disso, ele quis assegurar o fornecimento vindo da Venezuela, e foi essa a causa da tentativa de me arrancar do poder em abril de 2002.
Vale notar que uma das primeiras decisões tomadas por Pedro Carmona, que se autoproclamou presidente durante os dois dias que durou o golpe de Estado, foi a saída da Opep da Venezuela, sob os aplausos dos EUA e do FMI.

Pergunta - O sr. prometeu durante muito tempo que a Venezuela, quinto maior exportador mundial de petróleo, não faria do produto uma arma política. Agora, porém, ameaça os EUA com a possibilidade de não mais lhe fornecer ""uma gota sequer de petróleo".
Chávez -
Se Bush fosse louco o suficiente para tentar desestabilizar a Venezuela uma segunda vez ou submetê-la a um bloqueio, seríamos obrigados a isso. E, nesse caso, não teríamos a menor dificuldade em encontrar novos mercados: China, Europa e países da América Latina, como o Brasil, nos estendem os braços.

Pergunta - O sr. é o principal crítico da Alca, o projeto dos EUA de uma zona de livre comércio para o continente americano. É possível impedir sua criação?
Chávez -
A Alca morreu no dia em que os países do Caribe, reunidos no Caricom, mas sobretudo o Brasil e a Argentina, manifestaram, como fez a Venezuela, sua oposição a um projeto que permitiria que mercadorias e capitais americanos circulassem a seu bel-prazer, agravando a pobreza em nosso país. Hoje a Alca é como El Cid sobre seu cavalo: um cadáver que galopa para tentar fazer crer que ainda vive.

Pergunta - Hoje a Venezuela encarna o discurso mais antiliberal da América Latina.
Chávez -
Isso não constitui novidade. Em fevereiro de 1989, enquanto países como a Argentina descobriam as delícias da globalização, a decisão do governo de aplicar as receitas do FMI fez a população sair à rua, provocando a revolta do ""Caracazo", que deixou centenas de mortos. Hoje a Venezuela passou dos protestos à proposta de um modelo alternativo ao neoliberalismo. É a revolução bolivariana.

Pergunta - O que é a revolução bolivariana?
É um modelo humanista que constata que liberdade sem igualdade não faz sentido. É herdeiro das reflexões dos heróis da independência, que foram Francisco de Miranda e Simón Bolívar, e, também, tira lições dos erros da esquerda latino-americana nos anos 60.
Nesse sentido, é um projeto guevarista e também sandinista. A revolução bolivariana se fundamenta em cinco grandes eixos. Politicamente, o objetivo é estabelecer uma democracia popular e participativa, permitindo concretamente à população tomar seu destino em suas mãos. Com o que já acontece nas comunidades, que dispõem de orçamentos para gerir determinados projetos elas mesmas, a oligarquia não poderá mais se impor como fazia antes.
Em segundo lugar, combatemos a dívida social, em especial nos campos da saúde e da educação, reconhecendo, pela primeira vez, os direitos dos indígenas. No plano econômico, trata-se de substituir o modelo neoliberal e da receita petrolífera por uma política produtiva e de redistribuição.
O quarto eixo é a organização do território, sendo que 80% da população se concentra no norte. O último eixo é o internacional: favorecendo a integração latino-americana e nos aproximando da Europa, queremos dar nossa modesta contribuição para o surgimento de um mundo multipolar.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Crime: EUA confirmam pena de morte para atirador
Próximo Texto: Chávez
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.