São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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IRAQUE NA MIRA

Idéias para o regime iraquiano pós-Saddam incluem democracia ocidental, modelo turco e tirania "amigável"

Oriente Médio entra em momento decisivo

SYLVAIN CIPEL
DO "LE MONDE"

"A democracia é um remédio pesado. Ela deve ser administrada em doses pequenas, senão corre-se o risco de matar o paciente." Foi o que disse, referindo-se ao Iraque, o orientalista Bernard Lewis, durante um colóquio promovido em Washington, no início de outubro, por um grupo de reflexão muito próximo do governo Bush, o American Enterprise Institute for Public Policy (AEI). Richard Perle, diretor do Conselho de Política de Defesa junto ao Pentágono, é um dos dirigentes do instituto. O título do colóquio era ""O dia seguinte: os planos para o Iraque pós-Saddam".
Falou-se muito de democracia, e mais ainda dos obstáculos a seu surgimento num Iraque liberto de seu tirano. A leitura das minutas do colóquio oferece uma idéia bastante precisa do estado de espírito prevalecente hoje nos grandes círculos da administração americana. A quase totalidade dos participantes no colóquio -políticos e especialistas americanos, intelectuais iraquianos e membros do Congresso Nacional Iraquiano (CNI), principal grupo de oposição iraquiano no exílio- estava unida em torno de uma idéia principal: a guerra é inevitável. Os EUA não vão se contentar com "meias medidas", que, segundo Perle, consistiriam em ""retirar as armas de destruição em massa das mãos de Saddam Hussein". "A única solução no Iraque é substituir os brutos que hoje governam o país pelo tipo de pessoas desta mesa".
Para Perle, a derrubada da ditadura iraquiana seria apenas o primeiro ato de uma estratégia que visa aproximar o Iraque do Ocidente, da mesma maneira que Reagan elaborou uma estratégia para acuar o ""império do mal" soviético e restaurar a democracia na Europa central.
Vários participantes insistiram no fato de que o Oriente Médio vive um momento-chave, "o mais importante desde a queda do Império Otomano, em 1917", disse o opositor iraquiano Kanan Makiya. Mais provocador, Bernard Lewis usou uma frase diferente: ""O tempo que os povos do Oriente Médio têm para superar suas diferenças e aprender a cooperar é contado. Se conseguirem, poderão fazer grandes coisas. Se não, o terrorista suicida vai se tornar a metáfora de toda essa região."
Instaurar a democracia no Iraque? Isso não acontecerá ""da maneira que se esperava na Europa central", previne o oposicionista Rend Rahim Francke, da Fundação Iraque. O professor Lewis resume o problema em tom contundente. ""Dois pontos de vista predominam", disse ele. ""O primeiro é que os árabes seriam incapazes de formar um governo democrático, que é um fenômeno puramente ocidental. Eles são diferentes de nós. Façam o que fizerem, esses países serão governados por tiranos corrompidos, e o objetivo de uma política externa eficaz é assegurar que esses tiranos sejam amigáveis e não hostis. Esse ponto de vista é comumente visto como sendo o dos setores pró-arabes." Risos na sala.
O outro ponto de vista, prosseguiu Lewis, quer que ""seja possível, com nossa ajuda e sob nossa orientação, estabelecer democracias nesses países, ajudando-as gradativamente". "Esse ponto de vista é conhecido como imperialismo." Mais risos. Se o primeiro é rejeitado por princípio -o objetivo da intervenção ocidental no Iraque não pode reduzir-se à substituição de um tirano hostil por um "tirano amigável"- e se o segundo pode recriar uma aliança de todos os iraquianos contra a potência ""neo-imperialista" (""instaurar um governo servil significa já começar derrotado", previne, ainda, Lewis), que tipo de solução de meio-termo, de "democracia em pequenas doses", pode restar?
Duas opções emergem da discussão. A primeira é calcada sobre o chamado ""modelo turco". Nas palavras de um de seus defensores, ela significa a adoção de uma Constituição laica e democrática, que garanta a integridade territorial do país e o proteja contra qualquer pressão interna de caráter étnico ou religioso. E, sobretudo, ""alguém que defenda o país" num ambiente potencialmente hostil -sendo que esse "alguém" só pode ser o Exército.
Assim, o regime do Iraque pós-Saddam seria semelhante àquele que já conhecemos na Turquia, ou, ainda, no Paquistão ou na Argélia: um sistema político que garante um governo eleito, colocado sob a estreita vigilância de um Estado-Maior, autônomo mas pró-ocidental, que determina as opções do país em matéria de política regional e de segurança. Um governo que, nas questões decisivas, estaria a serviço do Exército, e não o inverso.
A segunda opção, muito evocada no colóquio, consiste na restauração da monarquia hachemita em Bagdá. Esta, instalada no trono em 1921 pelos britânicos, foi derrubada em 1958 por uma revolução social e política. ""Se um apelo lhes for feito, os hachemitas dirão que sim, mas não os imagino lançando um movimento monarquista para voltar ao poder", é o prognóstico de Bernard Lewis.
Enquanto isso, quase todos os participantes consideraram necessária a presença de um contingente importante de tropas da coalizão, sob comando americano, por vários anos.
Professor em Harvard, o iraquiano Kanan Makiya tentou propor uma perspectiva que, ele admite, seria totalmente revolucionária no Oriente Médio: o surgimento de um Iraque democrático, laico, federal, multiétnico e multiconfessional, rompendo por completo com qualquer referência ao nacionalismo árabe -um Iraque, em suas palavras, que ""seria o Estado de cidadãos com direitos iguais, logo, é preciso ter consciência disso, um Iraque não árabe". Suas propostas suscitaram poucos comentários -como se essa opção, que visa superar os antagonismos religiosos e nacionais do país o mais ""diversificado" do mundo árabe, decididamente não passasse de utopia. Mas será que as soluções imaginadas pelos EUA são mais realistas?


Tradução de Clara Allain


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