São Paulo, quinta-feira, 11 de janeiro de 2001

Texto Anterior | Índice

URÂNIO EMPOBRECIDO

Médico iraquiano diz que casos da doença quadruplicaram em região bombardeada na Guerra do Golfo

Câncer dispara em área atacada no Iraque

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"

As crianças sorriam antes de morrer, lentamente. Uma menina, internada no hospital de Basra, até colocou um vestido para ser fotografada. Ela viveu apenas mais três meses.
Todos eles brincaram com fragmentos de explosivos que foram deixados para trás por norte-americanos e britânicos ou eram filhos de pessoas que viviam perto das áreas bombardeadas no sul do Iraque. E todos conheciam o significado da expressão "urânio empobrecido".
Os leitores do "The Independent" se preocuparam com o assunto e doaram mais de US$ 250 mil para que remédios fossem comprados. Os políticos britânicos, por outro lado, preocuparam-se pouco com a tragédia e acabaram perdendo uma ótima chance de evitar o sofrimento de seus próprios soldados que serviriam nos Bálcãs mais tarde.
Em março de 1998, Jawad Khadim al Ali, um médico iraquiano que viveu no Reino Unido, mostrou mapas de Basra e de seus arredores, nos quais assinalou os locais onde havia casos de câncer. Nos últimos dias da Guerra do Golfo, Basra ficou coberta de poeira radiativa vinda dos mísseis antitanques norte-americanos.
Os mapas mostravam que os casos de câncer haviam quadruplicado nas áreas bombardeadas. Homens e mulheres apresentavam tumores terríveis, famílias inteiras sofriam de uma leucemia inexplicável.
Todos queriam contar suas histórias, sorridentes. Seus relatos eram tragicamente parecidos. Eles viviam em áreas em que ocorreram batalhas ou bombardeios aéreos. As crianças haviam brincado com restos de mísseis.
Uma comparação, feita em todo o território iraquiano, entre os locais bombardeados e a localização das vítimas de câncer é exata demais para deixar dúvidas.
Ali Hillal tinha 8 anos em março de 1998 e vivia perto de várias fábricas, em Diala, que foram repetidamente bombardeadas em fevereiro de 1991. Viveu apenas mais dois meses. Nunca houvera um caso de câncer em sua família, mas ele tinha um tumor no cérebro. Sua mãe, Fátima, ainda se lembra dos bombardeios: "Havia um cheiro estranho, parecido com o de inseticida".
O menino Youssef Abdul Mohammed veio de Kerbala, cidade próxima a bases militares iraquianas, que foram bombardeadas durante o conflito. Sangrou durante duas semanas até morrer.
As primeiras vítimas britânicas da "síndrome da Guerra do Golfo" começaram, então, a contar suas histórias de sofrimento. Eram quase iguais às histórias contadas pelos iraquianos. Algo terrível aconteceu no sul do Iraque no final da Guerra do Golfo, mas o governo britânico, preocupado com o medo gerado pelos problemas sanitários que afligem os soldados que serviram nos Bálcãs, diz que não há provas concretas de que o urânio empobrecido tenha causado as doenças.
Logicamente, as doenças foram usadas como propaganda pelo regime de Saddam Hussein. As lágrimas de um médico de Bagdá, porém, não eram propaganda. A leucemia realmente existia -e ainda existe.
Na sociedade iraquiana, admitir a existência de um caso de câncer na família é visto como um estigma social. Ora, por que tantos iraquianos -particularmente crianças- tiveram leucemia depois da Guerra do Golfo?
As vítimas, obviamente, eram iraquianas. Elas eram muçulmanas. Não eram caucasianas nem soldados da Otan (aliança militar ocidental).
Mas será que teremos de visitar as crianças bósnias ou sérvias, doentes de câncer, nos próximos anos? Nos Bálcãs, teremos de testemunhar as mesmas cenas que vimos no Iraque?
Ou, talvez, tenhamos de visitar hospitais militares em países europeus. É por isso que pedimos, logo após os bombardeios de 1999, ocorridos nos Bálcãs, que a aliança militar ocidental divulgasse os locais exatos nos quais armas contendo urânio empobrecido haviam sido utilizadas.
Como resposta, funcionários da Otan nos disseram que os detalhes sobre os bombardeios "não podiam ser divulgados".
Marie-Claude Dubin, jornalista francesa que cobriu a Guerra do Golfo e sofre da síndrome que leva o nome do conflito, acusou ontem as Forças Armadas dos EUA de não terem alertado os interessados sobre o perigo do urânio, apesar de saberem que ele existia.
A Otan, por sua vez, prometeu investigar os efeitos do urânio empobrecido utilizado em mísseis antitanques, mas insistiu que os riscos sanitários são mínimos.
A aliança concordou em colocar em prática um plano de ação para estudar os efeitos do uso da substância, que tem sido ligada a dezenas de casos de leucemia, que atinge militares ocidentais que serviram nos Bálcãs. George Robertson, secretário-geral da Otan, disse que a aliança "não tem nada a esconder". A controvérsia em torno de mísseis antitanques utilizados pela Otan nos Bálcãs teve início depois que oito soldados italianos morreram de câncer.

Com as agências internacionais

Texto Anterior: Eleição: Ex-presidente Alan Garcia anuncia sua volta ao Peru
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.