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Venezuelano roubará cena na cúpula do Rio
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
O governo brasileiro pode dizer, como manda a praxe diplomática, que a nova ofensiva retórica e prática do presidente
Hugo Chávez rumo ao "socialismo do século 21" é assunto
interno venezuelano.
Falso. Chávez acabará por, de
novo, roubar a cena de seu colega e amigo Luiz Inácio Lula da
Silva, durante a Cúpula do Mercosul, marcada para o Rio de
Janeiro, no fim da próxima semana. Não confundir, no entanto, roubar a cena com roubar a liderança de Lula na América Latina, confusão comum
na mídia internacional.
A liderança regional é inescapavelmente do Brasil, seja qual
for o presidente, pelo tamanho
do país, de sua economia e de
sua população. No máximo, esse dado da realidade pode ficar
ofuscado, quando há um presidente inapetente em política
externa, o que está muito longe
de ser o caso de Lula.
Holofotes
Chávez rouba o palco de Lula
sob dois aspectos: primeiro, o
dos holofotes. É escandalosamente claro que um governante que se atreve a falar em socialismo, quando a expressão
parecia relegada à lata de lixo
da história desde a queda do
Muro do Berlim, é mais notícia
do que todos os presidentes, como Lula, que apenas repetem o
convencional.
Segundo, rouba a idolatria
dos movimentos de esquerda e
da multifacetada constelação
de grupos sociais que defendem a idéia de que "outro mundo é possível" e está prestes a se
reunir de novo no Fórum Social
Mundial, desta vez no Quênia.
A propósito: enquanto o Fórum Social monta acampamento no Quênia, Lula estará em
Davos, para o encontro anual
do Fórum Econômico Mundial, sempre tomado como o
exemplo acabado do mundo
que o FSM rejeita.
Nesse terreno, Chávez já derrubou Lula há algum tempo.
Em maio passado, antes da Cúpula União Européia-América
Latina/Caribe, houve a tradicional contra-cúpula, que convidou o presidente venezuelano (e também Evo Morales, então recém-eleito na Bolívia),
mas não chamou Lula.
"Lula não faz uma política
econômica que seja considerada progressista", disse à Folha,
na ocasião, Alexandra Strickner, uma das lideranças das
ONGs que estão na linha de
frente do Fórum Social.
O que ajuda Chávez a roubar
a cena na cúpula do Rio é a
agenda do encontro, que na
verdade serão duas cúpulas em
uma. Numa delas, será retomado o debate em torno da institucionalização da Casa (Comunidade Sul-Americana de Nações), proposta originalmente
lançada no governo Fernando
Henrique Cardoso e reforçada
consideravelmente no de Lula.
Trata-se de formar um conglomerado com todos os países
da América do Sul, inclusive
duas das Guianas (a terceira é
francesa).
A discussão no Rio retomará
o debate interrompido em dezembro em Cochabamba (Bolívia), porque o texto sobre a institucionalidade da Casa, elaborado por uma comissão pomposamente batizada de Comissão de Reflexão de Alto Nível,
acabou chegando aos presidentes de forma burocrática.
Petrodólares
Chávez tem se queixado, justamente, do parco dinamismo
das reuniões de cúpula, motivo
de resto de choques verbais virtualmente públicos com Lula
em mais de uma ocasião.
O segundo tema principal da
cúpula (o Mercosul propriamente dito) estará centrado no
debate de como superar o que o
jargão diplomático batiza de
"assimetrias" no bloco (as
enormes diferenças entre os
sócios mais ricos, Brasil e Argentina, e os dois mais pobres,
Uruguai e Paraguai).
Lula deu ordens terminantes
para que se estabeleça tratamento privilegiado aos dois sócios menores, em todos os aspectos (financiamentos, comércio, desburocratização das
importações).
O problema é que Chávez,
mais que promessas ou intenções, já despejou uma pilha
considerável de petrodólares
nos países mais pobres da região, em especial na Bolívia, e
até na relativamente rica Argentina, da qual comprou títulos. Tem portanto mais a exibir
do que Lula em uma cúpula que
deveria marcar a transferência
da presidência temporária do
Mercosul do Brasil para o Paraguai, mas acabará marcada pelo
espetáculo em torno do "socialismo do século 21".
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