São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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MULHERES DO ISLÃ

Em livro, Irshad Manji exalta poder feminino nas sociedades islâmicas; obra rendeu ameaças de morte à autora

"Mudança deve partir das muçulmanas"

DA REDAÇÃO

O islã precisa mudar, e a mudança deve partir das mulheres. Essa questão delicada ganha uma defesa apaixonada e contundente na voz da jornalista muçulmana Irshad Manji, cujo último livro, "The Trouble with Islam" (o problema com o islã) rendeu à autora o primeiro lugar em vendas em seu país, o Canadá, e agradecimentos calorosos de muçulmanas no mundo todo. Mas também rendeu ameaças de morte.
Manji, 35, diz que não tem medo e que é a coragem de vir à tona e apontar o que acha errado que despertou o ódio de alguns de seus correligionários. "Pensar por si só é um direito concedido por Deus a todos, independentemente da religião ou do sexo", diz.
A escritora, cuja família veio de Uganda, está acostumada a falar demais e a ouvir o que não quer. Aos 14 anos, foi expulsa da escola religiosa pelo excesso de perguntas que fazia aos professores. "Hoje as mulheres vêm me dizer que eu as estou ajudando a encontrar sua própria voz", conta, comemorando os primeiros sinais de mudança. "Talvez essas mulheres que você esteja encontrando no Brasil sejam um exemplo de como as muçulmanas estão deixando de apenas seguir os homens em sua vida."
Numa pausa entre as viagens para lançar o livro na Europa, Manji falou com a Folha, por telefone. Eis os principais trechos.
(LUCIANA COELHO)

 

Folha - Como vai a repercussão?
Irshad Manji -
Recebi uma série de ameaças de morte, de cartas e e-mails de ódio. Mas isso era previsível. O que me surpreendeu foi o tanto de apoio e amor que estou recebendo de muçulmanos pelo mundo, não só do Ocidente, sobretudo de mulheres e jovens. Eles me agradecem por trazer à tona coisas que eles só se permitiam pensar com seus botões.

Folha - Por que a sra. acha que o seu livro causou tanta comoção?
Manji -
Eu perguntei ao Salman Rushdie [autor de "Os Versos Satânicos"] por que ele apoiou um livro que poderia trazer para mim os mesmos tipos de problema que ele teve. Ele disse: "Um livro é mais importante que uma vida". Eu ri e fiquei esperando que ele me dissesse que era piada. Mas ele disse que, mesmo que você perca sua vida, algo ficará: as suas idéias. Penso que é isso que irrita tantos muçulmanos. Eu não temo pela minha vida. Minha mãe teme, minha companheira teme, eu não.

Folha - Muitos muçulmanos com quem conversei dizem que nada no Alcorão justifica a violência ou a violação de direitos humanos. Por que a sra. pensa que isso acontece?
Manji -
Eu discordo. É confortável pensar que isso não tem nada a ver com a religião e, portanto, com você. Engraçado que tantos muçulmanos foram à rua protestar quando a França proibiu o uso do véu em escolas públicas, mas foi impossível reunir o mesmo número de manifestantes contra a Arábia Saudita, que impõe o véu. Os muçulmanos não querem confrontar a realidade. Hipocrisia é um dos motivos pelo qual você não vê muçulmanos protestando.

Folha - Não é um problema de interpretação?
Manji -
Muita gente vai dizer que os versos do Alcorão estão sendo explorados para propósitos políticos, eu concordo. Mas quem tem uma pauta particular para matar, ferir e torturar pode se amparar no Alcorão. Como todo livro sagrado, o Alcorão tem versos que apóiam e que condenam a violência. Precisamos reconhecer o lado desagradável do Alcorão.

Folha - A polarização na mídia não torna mais difícil assumir esse lado desagradável?
Manji -
Com certeza torna, mas não há outro modo de a mudança ocorrer. E não-muçulmanos têm um papel crucial. Uma empresa fez uma pesquisa na França com muçulmanas após a proibição do véu, e a maioria disse que a aprovava. Não porque elas se opunham ao véu, mas porque se opunham à violência e à intimidação com que eram tratadas. Quando vem de fora, a pressão incentiva uma discussão na comunidade.

Folha - E a partir de dentro, o que pode ser feito?
Manji -
Governos e entidades deveriam aumentar o poder das muçulmanas por meio do microcrédito. Assim, essas mulheres poderão usar o dinheiro como bem entenderem, poderão ler o Alcorão por si mesmas e ver como as passagens são muito mais abrangentes do que aquilo que lhes enfiam pela goela. Temos um estudo que mostra que, quando as muçulmanas têm seus próprios ativos, investem em suas famílias, suas comunidades, suas cidades. Todos se beneficiam, e o primeiro benefício é a alfabetização.

Folha - As mulheres são cidadãs de segunda classe no islã?
Manji -
Em muitos casos. No Paquistão, segundo a Anistia Internacional, há dois assassinatos de mulheres em nome da honra por dia. No Irã, se você é suspeita de ser lésbica, você é coberta de branco, enterrada e apedrejada. Um relatório da ONU apontou três grandes problemas no mundo árabe muçulmano: falta poder para a mulher, liberdade e conhecimento. Se resolvermos a parte da mulher, resolvemos os outros.

Folha - Então as reformas devem começar a partir das mulheres?
Manji -
Eu acho que sim por uma razão simples: as mulheres têm menos a perder. E melhorar as condições das mulheres significa melhorar as de muita gente.


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