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ESTRANHOS NO PARAÍSO
Antropólogo Canclini rebate Huntington e diz faltar a países latinos políticas para lidar com a questão
"AL deve se responsabilizar por imigrantes"
FLÁVIA MARREIRO
DA REDAÇÃO
Para o antropólogo Néstor García Canclini, faltam aos países latino-americanos instrumentos políticos e diplomáticos para lidar
com o número cada vez maior de
seus cidadãos migrantes -pelos
quais também devem se responsabilizar. "É uma parte do país
que está lá", afirma.
No diagnóstico de Canclini, há
poucos centros que estudam a
problemática na região. "Seria necessário conhecer e compreender
mais para atuar."
A onda migratória contemporânea, explica o argentino radicado no México, instaura o múltiplo
"pertencimento". "Os migrantes
estão comprometidos com a sociedade americana para trabalhar, para consumir, para participar da vida cotidiana. Mas também estão comprometidos com
as cidades do Brasil ou do México
das quais saíram", afirma.
Para Canclini, a razão da dispersão do "credo americano" anglo-americano é menos a onda migratória hispânica -conforme tese
do cientista político americano
Samuel Huntington- do que o
anonimato social e o deslocamento dos centros de poder.
Autor de "Latino-americanos
Buscando Lugar neste Século"
(2002), ainda sem edição no Brasil, Canclini diz que não tem
"muitas ilusões ao propor a América Latina como lugar mundial",
mas aponta o caminho para a integração: experimentar alguns
dos modelos da União Européia.
Folha - A revista do "New York Times" mostrou a imagem de Luiz
Inácio Lula da Silva como se estivesse numa pintura muralista mexicana. Nos EUA, nos enquadram
como hispânicos, embora, em geral, não nos vejamos assim. Isso pode mudar a forma como o Brasil se
enxerga na América Latina?
Néstor García Canclini - O lugar
da América Latina no mundo e do
Brasil na América Latina não é o
"New York Times" que vai modificar nem nenhum ator externo.
Também não serão os governantes. Terá de haver uma coordenação consistente entre os países latino-americanos. Temos de construir circuitos de comunicação
permanente. Isso se faz montando uma rede de meios maciços
-TV, imprensa, cinema, música- e agentes educativos. Na
União Européia, por exemplo, há
programas que facilitam a co-produção de toda forma de conhecimento. Temos também de
criar circuitos, como foi feito lá,
para que o cinema, a TV e a música tenham espaços em que as pessoas se informem e se entretenham. Falta quase tudo isso na
América Latina. Há público disposto.
Folha - Enquanto John Kerry faz
campanha em espanhol, Huntington diz que os hispânicos atentam
contra o "credo americano". Qual o
significado disso?
Canclini - Não é o primeiro caso.
Já [Bill] Clinton e [George W.]
Bush usaram em seus discursos
frases em espanhol. Na eleição de
2002, a Flórida foi decisiva. Nesse
contexto, a reação de Huntington,
que traz a sugestão de expulsar os
hispânicos, ignora o papel que
eles têm como trabalhadores,
consumidores, pagadores de impostos -até os ilegais consomem- e seu forte papel político.
A posição de Huntington, tão racista, é sintomática da dificuldade
da sociedade americana em se
construir como intercultural, não
só multicultural. Há pouco, os
EUA eram modelo nos estudos
urbanos de uma sociedade fragmentada: um bairro é dos chicanos; outro, dos porto-riquenhos.
Vemos agora que esses grupos interagem e que não se pode ocultar
a interculturalidade, que é sempre
conflituosa, mas muito mais se
um país tem uma educação e uma
formação política que não permitem processar a convivência.
Folha - Huntington diz que o mexicano gosta menos de trabalhar,
de estudar. O que o sr. pensa?
Canclini É preconceito. Nenhum
antropólogo sério assina em baixo. Sabe-se que os latinos trabalham mais horas que os americanos e em condições de muito mais
esforço e sacrifício. Obviamente,
há muitos indocumentados, que
trabalham quando podem, que
têm outra concepção do corpo e
de muitos outros aspectos que
podem parecer dissonantes à cultura anglo-americana. Mas dizer
que só lhes interessam a sesta não
tem sentido. Há de se entender
que os EUA se transformaram em
uma sociedade em que há muitas
maneiras de viver, uma delas é a
dos anglo-americanos. Há muitas
formas de ser americano.
Folha - Fala-se que as novas migrações têm menos compromisso
com as sociedades que as recebem.
O sr. concorda?
Canclini - Não tem sentido. Uma
característica das sociedades contemporâneas é justamente o baixo compromisso com o posto de
trabalho devido à competitividade e à mobilidade constante nas
empresas. Ligamos para qualquer
empresa e uma máquina nos responde. É a grande perda do sujeito. Há menos gente nos lugares de
decisão. Não encontramos claramente compromissos no sistema
socioeconômico. Não é só um
problema dos imigrantes. É um
problema da mobilidade e do
anonimato no funcionamento do
sistema social e econômico.
Folha - O que esse tipo de migração traz de novo?
Canclini - Há uma enorme diferença. Agora, pode-se ir e vir em
menos de um ano, envia-se dinheiro, e-mails. Isso cria uma instabilidade -não só característica
das migrações mas também de todo o mundo contemporâneo. Em
realidade, o que há são múltiplos
"pertencimentos", não apenas
desenraizamento ou falta de compromisso. Os migrantes sentem
que estão comprometidos com a
sociedade americana para trabalhar, para consumir, para participar da vida cotidiana. Mas também estão comprometidos com
as cidades do Brasil ou do México
da qual saíram, querem voltar e
participar das festas, comunicar-se com a família.
Folha - Como os hispânicos podem se articular para não ser só alvo eleitoral ou de consumo?
Canclini - Já está nascendo um
movimento. Nos EUA, já se produzem milhões de produtos para
os hispânicos. Isso é resultado das
demandas políticas, socioeconômicas e culturais. Eles têm pedido
que sua língua seja reconhecida,
que lhes dêem educação em sua
própria cultura. É muito menor a
participação política em parte
porque o sistema os tem discriminado, mas há muitos prefeitos
hispânicos. E ainda há muito mais
espaço. Houve protestos, como
quanto ao maior número de hispânicos nas forças enviadas às
guerras, em termos proporcionais. Do lado dos países latino-americanos, nos faltam políticas e
instrumentos nas relações diplomáticas e culturais para lidar com
esses migrantes. É uma parte do
país que está lá. Temos pouquíssimos centros de estudos sobre a
multiculturalidade nos EUA. Seria necessário conhecer e compreender mais para atuar. Tanto
em relação aos migrantes que vivem nos EUA -para poder potencializar suas forças- como
para negociar. Custa-nos muito
compreender as regras do jogo na
economia e na política internacional. Temos poucos especialistas
-concentrados na Argentina, no
Brasil, no Chile e no México- capazes de dialogar interculturalmente com os americanos.
Folha - Que lugar pode buscar
a América Latina neste século?
Canclini - Se é difícil para os latino-americanos se pensarem como uma unidade, mais difícil é
nos verem como conjunto. Às vezes, nos estereotipam, como nesse
exemplo do "New York Times".
Há dois anos, diziam haver três
países "salváveis": Chile, Brasil e
México. O resto, cheguei a escutar
isso literalmente, é África. Mais
recentemente, a Argentina se
apresenta como atrativo depois
da grave crise. O resto quase não
se menciona. Não tenho ilusões
ao propor a América Latina como
lugar mundial, de investimento,
de desenvolvimento cultural. Embora seja certo que, no campo cultural, há o atrativo grande da música, de uma parte do cinema latino-americano (nem na Europa
nem nos EUA, passa de 1% do
mercado). Mas, nos grupos mais
informados, há uma consideração maior. Parte de nossa responsabilidade é saber achar nichos de
inserção mundial para nossos
produtos materiais e simbólicos.
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