São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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ESTRANHOS NO PARAÍSO

Antropólogo Canclini rebate Huntington e diz faltar a países latinos políticas para lidar com a questão

"AL deve se responsabilizar por imigrantes"

FLÁVIA MARREIRO
DA REDAÇÃO

Para o antropólogo Néstor García Canclini, faltam aos países latino-americanos instrumentos políticos e diplomáticos para lidar com o número cada vez maior de seus cidadãos migrantes -pelos quais também devem se responsabilizar. "É uma parte do país que está lá", afirma.
No diagnóstico de Canclini, há poucos centros que estudam a problemática na região. "Seria necessário conhecer e compreender mais para atuar."
A onda migratória contemporânea, explica o argentino radicado no México, instaura o múltiplo "pertencimento". "Os migrantes estão comprometidos com a sociedade americana para trabalhar, para consumir, para participar da vida cotidiana. Mas também estão comprometidos com as cidades do Brasil ou do México das quais saíram", afirma.
Para Canclini, a razão da dispersão do "credo americano" anglo-americano é menos a onda migratória hispânica -conforme tese do cientista político americano Samuel Huntington- do que o anonimato social e o deslocamento dos centros de poder.
Autor de "Latino-americanos Buscando Lugar neste Século" (2002), ainda sem edição no Brasil, Canclini diz que não tem "muitas ilusões ao propor a América Latina como lugar mundial", mas aponta o caminho para a integração: experimentar alguns dos modelos da União Européia.

 

Folha - A revista do "New York Times" mostrou a imagem de Luiz Inácio Lula da Silva como se estivesse numa pintura muralista mexicana. Nos EUA, nos enquadram como hispânicos, embora, em geral, não nos vejamos assim. Isso pode mudar a forma como o Brasil se enxerga na América Latina?
Néstor García Canclini
- O lugar da América Latina no mundo e do Brasil na América Latina não é o "New York Times" que vai modificar nem nenhum ator externo. Também não serão os governantes. Terá de haver uma coordenação consistente entre os países latino-americanos. Temos de construir circuitos de comunicação permanente. Isso se faz montando uma rede de meios maciços -TV, imprensa, cinema, música- e agentes educativos. Na União Européia, por exemplo, há programas que facilitam a co-produção de toda forma de conhecimento. Temos também de criar circuitos, como foi feito lá, para que o cinema, a TV e a música tenham espaços em que as pessoas se informem e se entretenham. Falta quase tudo isso na América Latina. Há público disposto.

Folha - Enquanto John Kerry faz campanha em espanhol, Huntington diz que os hispânicos atentam contra o "credo americano". Qual o significado disso?
Canclini
- Não é o primeiro caso. Já [Bill] Clinton e [George W.] Bush usaram em seus discursos frases em espanhol. Na eleição de 2002, a Flórida foi decisiva. Nesse contexto, a reação de Huntington, que traz a sugestão de expulsar os hispânicos, ignora o papel que eles têm como trabalhadores, consumidores, pagadores de impostos -até os ilegais consomem- e seu forte papel político. A posição de Huntington, tão racista, é sintomática da dificuldade da sociedade americana em se construir como intercultural, não só multicultural. Há pouco, os EUA eram modelo nos estudos urbanos de uma sociedade fragmentada: um bairro é dos chicanos; outro, dos porto-riquenhos. Vemos agora que esses grupos interagem e que não se pode ocultar a interculturalidade, que é sempre conflituosa, mas muito mais se um país tem uma educação e uma formação política que não permitem processar a convivência.

Folha - Huntington diz que o mexicano gosta menos de trabalhar, de estudar. O que o sr. pensa?
Canclini
É preconceito. Nenhum antropólogo sério assina em baixo. Sabe-se que os latinos trabalham mais horas que os americanos e em condições de muito mais esforço e sacrifício. Obviamente, há muitos indocumentados, que trabalham quando podem, que têm outra concepção do corpo e de muitos outros aspectos que podem parecer dissonantes à cultura anglo-americana. Mas dizer que só lhes interessam a sesta não tem sentido. Há de se entender que os EUA se transformaram em uma sociedade em que há muitas maneiras de viver, uma delas é a dos anglo-americanos. Há muitas formas de ser americano.

Folha - Fala-se que as novas migrações têm menos compromisso com as sociedades que as recebem. O sr. concorda?
Canclini
- Não tem sentido. Uma característica das sociedades contemporâneas é justamente o baixo compromisso com o posto de trabalho devido à competitividade e à mobilidade constante nas empresas. Ligamos para qualquer empresa e uma máquina nos responde. É a grande perda do sujeito. Há menos gente nos lugares de decisão. Não encontramos claramente compromissos no sistema socioeconômico. Não é só um problema dos imigrantes. É um problema da mobilidade e do anonimato no funcionamento do sistema social e econômico.

Folha - O que esse tipo de migração traz de novo?
Canclini
- Há uma enorme diferença. Agora, pode-se ir e vir em menos de um ano, envia-se dinheiro, e-mails. Isso cria uma instabilidade -não só característica das migrações mas também de todo o mundo contemporâneo. Em realidade, o que há são múltiplos "pertencimentos", não apenas desenraizamento ou falta de compromisso. Os migrantes sentem que estão comprometidos com a sociedade americana para trabalhar, para consumir, para participar da vida cotidiana. Mas também estão comprometidos com as cidades do Brasil ou do México da qual saíram, querem voltar e participar das festas, comunicar-se com a família.

Folha - Como os hispânicos podem se articular para não ser só alvo eleitoral ou de consumo?
Canclini
- Já está nascendo um movimento. Nos EUA, já se produzem milhões de produtos para os hispânicos. Isso é resultado das demandas políticas, socioeconômicas e culturais. Eles têm pedido que sua língua seja reconhecida, que lhes dêem educação em sua própria cultura. É muito menor a participação política em parte porque o sistema os tem discriminado, mas há muitos prefeitos hispânicos. E ainda há muito mais espaço. Houve protestos, como quanto ao maior número de hispânicos nas forças enviadas às guerras, em termos proporcionais. Do lado dos países latino-americanos, nos faltam políticas e instrumentos nas relações diplomáticas e culturais para lidar com esses migrantes. É uma parte do país que está lá. Temos pouquíssimos centros de estudos sobre a multiculturalidade nos EUA. Seria necessário conhecer e compreender mais para atuar. Tanto em relação aos migrantes que vivem nos EUA -para poder potencializar suas forças- como para negociar. Custa-nos muito compreender as regras do jogo na economia e na política internacional. Temos poucos especialistas -concentrados na Argentina, no Brasil, no Chile e no México- capazes de dialogar interculturalmente com os americanos.
Folha - Que lugar pode buscar a América Latina neste século?
Canclini - Se é difícil para os latino-americanos se pensarem como uma unidade, mais difícil é nos verem como conjunto. Às vezes, nos estereotipam, como nesse exemplo do "New York Times". Há dois anos, diziam haver três países "salváveis": Chile, Brasil e México. O resto, cheguei a escutar isso literalmente, é África. Mais recentemente, a Argentina se apresenta como atrativo depois da grave crise. O resto quase não se menciona. Não tenho ilusões ao propor a América Latina como lugar mundial, de investimento, de desenvolvimento cultural. Embora seja certo que, no campo cultural, há o atrativo grande da música, de uma parte do cinema latino-americano (nem na Europa nem nos EUA, passa de 1% do mercado). Mas, nos grupos mais informados, há uma consideração maior. Parte de nossa responsabilidade é saber achar nichos de inserção mundial para nossos produtos materiais e simbólicos.


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