São Paulo, quarta-feira, 11 de setembro de 2002

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Notícias de uma guerra particular

Shannon Stapleton/Reuters
Pai e filho observam uma bandeira dos Estados Unidos feita de retalhos durante cerimônia em East Meadow, em Nova York



O GOLPE O mendigo Charles Israelian, 45, jamais pisou no WTC. Quando as torres caíram, no entanto, ele aproveitou a comoção em uma cidadezinha perto de Nova York para ganhar algum dinheiro. Arrumou um uniforme de bombeiro e passou a bater nas portas das casas. Ele pedia doações para o filho de um bombeiro morto, seu "amigo". A combinação de vaidade e sentimento de culpa foi fatal: ele convenceu entre 150 e 200 pessoas até ser preso


SÉRGIO DÁVILA
DE NOVA YORK

O filho que procurou em vão pelo pai, a inundação de presentes, os mendigos picaretas, o cachorro homenageado e um inusitado museu de vozes.
Cada um dos 17 milhões de nova-iorquinos tem a sua "história do World Trade Center", nem que seja apenas a lembrança do que estava fazendo às 8h46 daquele 11 de setembro. A Folha conta cinco desses casos, tal como se lembram seus protagonistas.

O reencontro
Em 1975, o desempregado norte-americano Richard Penny foi preso por ter planejado um assalto frustrado ao guichê de passagens de uma estação de metrô em Nova York. Dezessete meses depois, conseguiu liberdade condicional e, segundo sua família, nunca mais foi o mesmo.
Tanto que, em 1987, sumiu do pequeno apartamento que mantinha no Brooklyn sem avisar ninguém. Foi a última vez que seu filho, Richard Penny Jr., o viu. Desde então, o corretor de valores de 33 anos mantinha uma busca sistemática pelo país. A cada semana, por exemplo, se dedicava a ligar para todos os "Penny" de uma lista telefônica de uma determinada cidade.
Há alguns dias, a repórter do jornal "The New York Times" responsável pela série "Retratos da Perda", que vem fazendo biografias de todas as vítimas desde o dia 12 de setembro passado, ligou para a casa de Penny Jr. em Norfolk (Virgínia) para confirmar uns dados. Quando viu a expressão no rosto de sua mulher, Monika, ao lhe passar o telefone, ele desconfiou que havia algo errado.
"Dados sobre quem?", perguntou ele.
"Sobre seu pai", foi a resposta. "Ele é uma das vítimas do ataque ao World Trade Center."
Ele soube então que Richard Penny vivia como mendigo nas ruas de Nova York desde a saída do apartamento, mas que, em 1998, sua sorte começou a mudar.
Foi quando ele se inscreveu num programa municipal para sem-teto e passou a morar num abrigo público. Logo, arrumou seu primeiro emprego em anos: coletar papéis recicláveis dos escritórios do World Trade Center.
É o que ele estava fazendo logo no começo da manhã do dia 11 de setembro passado, na Torre Norte, a primeira a ser atingida.
Passado o choque inicial, Penny Jr. pretende agora tentar refazer a trajetória de seu pai na última década, falando com o maior número de pessoas possível que conviveram com ele no abrigo e antes, nas ruas. "Eu preciso saber como foi o final da vida dele", diz o filho. "É o mínimo que eu devo à memória dele."

O herói canino
Durante os resgates dos escombros do World Trade Center, mais de 200 cachorros da divisão K-9 da polícia de Nova York ajudaram os policiais e os bombeiros nas buscas, fosse de sobreviventes (dezoito, todos eles encontrados nos dois primeiros dias), seja de pedaços de corpos (20 mil).
Apesar de jornadas diárias de até 20 horas, nenhum deles se machucou. Um deles, de apelido Costeleta de Porco, ganhou fama mundial ao aparecer numa fotografia atravessando montes incandescentes numa maca improvisada. Continua vivo e bem.
Mas a divisão, cujo nome brinca com a sonoridade da sigla K-9 (a mesma de "canine", canino, em inglês), teve uma baixa. É o labrador amarelo Sirius, 5 anos, que ajudava o batalhão policial estacionado no próprio World Trade Center e dormia num canil localizado no subsolo das torres.
Quando recebeu o chamado de emergência naquele dia, o soldado David Lim se despediu de Sirius e prometeu voltar logo para pegá-lo.
O prédio desabou antes e os restos mortais do cachorro foram encontrados só em janeiro.
Há alguns dias, Sirius, que teve seu nome tirado da Estrela Cão, foi alvo de uma cerimônia especial no Liberty State Park que reuniu 100 cachorros, seus treinadores e centenas de policiais.
As cinzas de Sirius foram enterradas numa urna de madeira no parque, envolta por uma medalha de heroísmo da Polícia de Nova York. A homenagem teve direito a procissão de gaiteiros de fole e uma salva de 21 tiros.
Treinados, os cachorros não latiram para os disparos.

A Mendigos S.A.
Charles Israelian, 45, não é bombeiro e jamais pisou no World Trade Center. Quando as torres caíram, no entanto, ele concordou com a maioria das pessoas de que o mundo não seria mais o mesmo a partir daquele dia. Pelo menos, ele imaginou, não o seu mundo, de pequenos expedientes e noites passadas na rua.
Aproveitando a comoção que tomou a cidadezinha de Smithtown, na periferia de Nova York, Israelian arrumou um uniforme do Corpo de Bombeiros local e passou a bater nas portas de todas as casas. Era recebido, convidado para entrar e inundado por chá, café e bolinhos, geralmente por atenciosas senhoras grisalhas.
Para todas, contava sua história: seu melhor amigo era bombeiro em Manhattan e tinha sido um dos primeiros a morrer no resgate das vítimas. Viúvo, havia deixado uma criança órfã, e era para ela que Israelian pedia doações. Não precisava ser muito dinheiro, quaisquer US$ 10 resolviam. Importante era a intenção.
Além disso, os nomes dos doadores apareceriam na primeira página do jornal local. A combinação de vaidade e sentimento de culpa foi fatal: ele conseguiu convencer entre 150 e 200 pessoas. Menos uma senhora mais desconfiada, que acionou a polícia, que prendeu Israelian. No flagrante, ele não tinha mais dinheiro. Gastou tudo com crack.
"É um amador", diria Woodrow Flemming, 48, que poderia ser eleito "Mendigo do Ano" caso a categoria contasse com uma publicação econômica mensal. Woodrow é um dos principais presos das centenas de casos de fraudes envolvendo o World Trade Center desbaratadas pela polícia de Nova York desde então.
Quando viu o montante de doações que se dirigiu a Nova York logo após o ataque, soma calculada pelo governo como algo entre US$ 1 bilhão e US$ 2 bilhões, o mendigo resolveu que seria uma injustiça não receber um pedaço da bolada. Chamou então 13 amigos, todos vivendo na rua como ele, dois deles velhos conhecidos do programa de desintoxicação de heroinômanos.
E traçou seu plano.
Seguindo instruções detalhadas de Woodrow, os 14 se inscreveriam nos diversos planos privados e públicos de assistência à população diretamente atingida pelo terror, como os da Cruz Vermelha e da Safe Horizon.
O grupo pediria dinheiro afirmando ter perdido suas banquinhas de camelô que funcionavam em volta do complexo de prédios, banquinhas essas que só existiam na imaginação de Woodrow, que aliás foi batizado em homenagem ao presidente dos EUA Woodrow Wilson (1913-1921).
Deu certo: o total embolsado pelos 14 foi de US$ 109 mil, dos quais Woodrow, como todo CEO que se preze, ficou com a maior fatia. O problema é que o agente do governo que recebeu os pedidos desconfiou da semelhança entre eles e acionou a polícia. O mendigo empreendedor e seus amigos esperam a sentença na cadeia. Podem pegar até 15 anos.

Os presentes
O lugar é o Hangar 5, no Aeroporto Internacional JFK, na periferia de Nova York. Na porta, um único vigia descansa despreocupado com o conteúdo do armazém, avaliado em US$ 75 milhões. Sua calma se justifica: não é um avião de passageiros nem sequer uma nova arma militar.
Lá dentro se amontoam milhares e milhares de objetos. São 185 mil metros quadrados lotados de ursinhos de pelúcia, remédios e bolas de algodão. Botas de borracha, enlatados e cobertores. Garrafas de água, cartas, bandeiras, ovos pintados, livros. Roupas para o frio, para o calor e para meias-estações. Moedas.
E milhões de pinturas de crianças, todas assinadas.
São os presentes enviados pelo mundo inteiro para a cidade de Nova York, que agradece muito o carinho dispensado mas não sabe o que fazer com eles. "Recebemos cobertores de lã no auge do verão e outras coisas pitorescas mas bem-intencionadas", disse o prefeito Michael Bloomberg.
O imbróglio beneficente já mobiliza três instâncias do governo, uma agência federal e o Exército da Salvação. Todos sabem que há pessoas necessitadas, em Nova York mesmo, de alguns dos itens enviados. O problema é que ninguém quer pagar a conta da armazenagem e do transporte.
"Você não acreditaria no que temos ali dentro", disse John Toal, gerente de operações da Prefeitura. "Só de produtos para cachorro tem 25 tipos diferentes, de xampu a comida enlatada. E meias, meu Deus do céu, mais meias do que na Macy"s!".
E continuam a chegar, agora motivados pelo primeiro aniversário do ataque. Com a palavra, Michael Bloomberg: "Agradecemos o carinho, mas, por favor, chega de presentes."

As vozes
Como primeira tragédia de grandes proporções da era do celular, a queda do World Trade Center deixou um legado inédito: milhares de recados de vítimas deixados em milhares de secretárias eletrônicas e caixas postais ao redor de Nova York e do mundo.
Algumas pessoas, como Veronica Hynes, decidiram guardar as mensagens para sempre. "Querida", diz a voz calma e grossa em sua secretária eletrônica, "as coisas aqui estão muito ruins. Não sei se vou conseguir sair vivo. Queria dizer que amo você e nossos filhos." É seu marido, o bombeiro Walter Haynes, morto naquele dia durante os resgates.
A partir da mensagem, a nova-iorquina fez diversas fitas cassete, que pretende guardar para sempre e dar para seus filhos ouvirem quando eles forem mais velhos.
Ela não está sozinha. No começo do mês a californiana Nikki Silva lançou o Sonic Memorial Project (www.sonicmemorial.org), que está recolhendo pelo mundo as vozes deixadas pelas vítimas do WTC a seus parentes.
"Não há sentido mais visceral, que desperte mais emoções do que o som", disse a produtora de rádio, que já recebeu fitas cassete e e-mails com arquivos sonoros de diversas partes do país, principalmente dos Estados de Nova York, Nova Jersey e Connecticut.
Com as vozes vieram muitos ruídos que ajudam a compor o cenário daquele dia. É o caso de portas de elevadores abrindo e fechando, alarmes disparados, ruídos de metais se retorcendo e até mesmo o exato momento da queda das duas torres e toda a massa sonora de barulhos que acompanhou o desastre.
Quem estava lá se lembra: um barulho de batida de carro; um silêncio de segundos; alarmes começando a soar; e os gritos, milhares, um atrás do outro.


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