|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Doutrina Bush mina elo transatlântico
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A Doutrina Bush, o conjunto de
princípios e de métodos preconizados por Washington para proteger os EUA de ataques terroristas e para consolidar sua hegemonia, pôs em xeque a aliança entre
os EUA e a Europa ocidental.
Por conta do unilateralismo demonstrado por Washington nos
últimos meses, a França e a Alemanha, que constituem o motor
da União Européia (UE), entraram em rota de colisão com os
EUA. Paris ameaçou até usar seu
direito de veto no Conselho de Segurança da ONU -caso ele decidisse apoiar a invasão do Iraque.
Essas divergências poderão ter
consequências graves no futuro se
Washington se mantiver unilateralista, relegando à ONU um papel secundário na reconstrução
iraquiana (apesar da veleidade de
ceder mais espaço à entidade manifestada por autoridades americanas na última semana), segundo analistas ouvidos pela Folha.
"As relações transatlânticas não
serão abaladas demais no futuro
por causa da crise. Continuará a
haver acordos e desacordos. Porém, se a administração americana não se mostrar mais multilateralista, os desacordos deverão ser
mais frequentes que os acordos.
Mas isso não significa que a aliança transatlântica conhecerá seu
fim", analisou Hubert Védrine,
ex-chanceler francês (1997-2002).
De fato, se os falcões do governo
mantiverem sua influência na política externa de George W. Bush,
haverá um distanciamento mais
nítido entre os valores dos EUA e
os de alguns dos principais países
europeus, aprofundando o fosso
criado pela Guerra do Iraque.
Todavia, para Charles Kupchan,
do Council on Foreign Relations
(EUA), a situação é ainda mais séria. "As atitudes do governo Bush
mostraram à Europa que há as diferenças vitais entre seus interesses e os dos americanos. Os europeus, sobretudo os franceses e os
alemães, perceberam que não podem influenciar Washington e tiveram de repensar o modo como
agirão em relação aos EUA."
De acordo com Charles Tilly,
autor de "From Contention to
Democracy" (da contenção à democracia), o que realmente está
em jogo é o "sistema multilateralista criado após a Segunda Guerra". Os principais assessores de
Bush não querem se curvar às restrições impostas pela ONU. Isso
fará com que até os aliados dos
EUA "se sintam ameaçados".
Segundo Kupchan, a médio
prazo, isso servirá para consolidar
a UE, apesar das divisões atuais.
"Mesmo o Reino Unido, o maior
aliado geopolítico de Washington, notará que não tem muito a
ganhar com seu apoio aos EUA."
A chamada "nova Europa" ainda é a incógnita da equação. Contudo, em tempos de paz, os países
do Leste Europeu deverão concluir que não podem perder a
oportunidade que lhes foi oferecida pela "velha Europa" -uma
verdadeira adesão à UE.
Kupchan acredita que mesmo a
Rússia já tenha compreendido
que uma aproximação com os
EUA não lhe renderia os frutos esperados. "Os russos fizeram várias concessões estratégicas para
aproximar-se dos americanos na
última década, no entanto nunca
foram tratados como parceiros.
Hoje eles percebem que a UE pode ser mais interessante do que
eles imaginavam", explicou.
Vale lembrar que o comércio internacional da Rússia apenas com
a Alemanha já se equipara ao que
ela tem com os EUA. Isso sem falar nos outros 14 atuais membros
da UE. Esta, a propósito, deverá
contar com 25 países a partir de
maio do próximo ano, tornando-se um mercado ainda mais
atraente para os russos.
Assim, embora tenha constituído um sucesso inicial (com a vitória bélica no Iraque), acrescendo
o capital político interno do presidente, a Doutrina Bush não garante que a hegemonia dos EUA
seja considerada positiva pela comunidade internacional. A dificuldade americana em encontrar
países para ajudar na reconstrução do Iraque é um bom exemplo.
Ora, se Washington não abrir
mão da intransigência geopolítica
de sua atual administração, o
grande perdedor será o "sistema
multilateralista benigno" -representado pela ONU-, de acordo com Tilly. Isso "transformará a
cena internacional em algo ainda
menos seguro, num momento em
que a ameaça terrorista ainda é
das mais importantes".
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Glucksmann e Todorov divergem sobre guerra Índice
|