São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 2001

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Tecnologia serviu para contar judeus, afirma livro

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Em uma das salas do Museu do Holocausto de Washington há uma máquina da IBM para tabulação de dados em cartões perfurados. Segundo o texto que o acompanha, o engenho, produzido a partir de um modelo inventado por Hermann Hollerith, é semelhante ao que serviu para que a Alemanha nazista fizesse recenseamentos demográficos levando em consideração informações sobre a religião e a raça dos entrevistados, com o objetivo de identificar quem era judeu.
O norte-americano Edwin Black, em seu livro "IBM e o Holocausto", sustenta que essas máquinas facilitaram consideravelmente a tarefa de tentar eliminar os judeus da Europa, o que provavelmente é verdade, e atribui à IBM o papel de sócio de Hitler na empreitada, o que certamente é um exagero.
O livro está saindo hoje em 17 países, inclusive no Brasil, e seu lançamento foi cercado de sigilo, o que serve para alavancar publicidade e evitar resenhas negativas de especialistas no assunto.
Black, que é jornalista, não historiador, descreve como a Dehomag, subsidiária alemã da IBM, forneceu máquinas e tecnologia para que o regime nazista contasse judeus, controlasse horários de trens para deportações e facilitasse o funcionamento dos campos de extermínio.
O autor sustenta que o Holocausto foi mais letal graças à tecnologia da IBM, o que é uma simplificação perigosa -sabe-se que os nazistas contavam sobretudo com uma formidável malha de colaboradores e informantes, muitos deles judeus, para eliminar suas vítimas.
O eixo do livro é a tentativa de Black de encontrar em Thomas J. Watson, o todo-poderoso executivo da IBM nos EUA, um "Hitler do capital", um homem insensível ao drama dos judeus, preocupado somente com os lucros de sua empresa.
Para reforçar essas impressões, Black revela que Watson era chamado dentro da IBM de "o líder", algo como "o führer" -para o autor, um exemplo do amálgama entre os dois deu-se em 1937, quando o segundo homenageou o primeiro com uma medalha, devolvida por Watson somente em 1940, quando a guerra estava em curso e Hitler já era o inimigo declarado do mundo.
O envolvimento de grandes empresas com o Terceiro Reich, com participação mais ou menos decisiva na matança de judeus, é um fato conhecido. Corporações alemãs hoje perfeitamente integradas à vida das pessoas comuns de todo o mundo, como Siemens, Volkswagen e BMW, tiveram seus dias de cumplicidade com a máquina nazista.
Mas é compreensível que empresas da Alemanha participassem -inclusive por afinidade ideológica, em vários casos- da empreitada de Hitler. O que não é compreensível, diz Black, é que uma empresa norte-americana o fizesse.
Black pede que seu livro seja compreendido no contexto histórico que ele mesmo parece ignorar. O meio século que o separa dos fatos narrados lhe dá uma espécie de "conforto moral" para julgar o comportamento daqueles que não condenaram Hitler na primeira hora.
A título de "contexto", Black usa à exaustão manchetes do "The New York Times" sobre a perseguição aos judeus na Alemanha nos anos 30, para mostrar que a IBM e seus dirigentes tinham como saber o que estava ocorrendo, mas, mesmo assim, continuaram a fornecer ao Reich seus serviços.
Pelo menos até o pogrom da Noite dos Cristais (1938), porém, tudo o que a Alemanha fez contra os judeus era a regra, não a exceção, numa Europa habituada a tratar judeus como párias. Isto é: do ponto de vista da época, leis que excluíssem os judeus da vida civil de um país europeu não causavam comoção, pois eram comuns.
Para ler "IBM e o Holocausto" é preciso também atravessar clichês como "era necessário um bode expiatório, e culparam os judeus por tudo", bobagens como "o fascismo, sistema político totalitário controlado pelo Estado, foi inventado por Mussolini" e discursos pueris como "a alvorada da era da informação começava com o ocaso da decência humana".
Apesar disso, a Black não se pode negar o mérito de ter obtido e estudado documentos em quantidade suficiente para tornar inquestionável a participação da IBM nos esforços nazistas, adicionando combustível à discussão sobre a ausência de uma distinção clara entre mocinhos e bandidos em relação ao Holocausto. As vítimas, todos sabemos quem foram. Sobre os vilões, pelo jeito, ainda há muitos a descobrir.

"IBM e o Holocausto" - Editora Campus, 624 páginas, R$ 54.


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