São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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HUMOR ISLÂMICO

Repressão em países árabes faz desenhos publicados em jornais privilegiarem questões internacionais

Israel é alvo preferido de charges islâmicas

LEILA SUWWAN
DE NOVA YORK

O vilão quase invariavelmente leva a estrela de Davi no braço ou usa uniforme de Tio Sam. O presidente americano, George W. Bush, sua secretária de Estado, Condoleezza Rice, e o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, são monstros, açougueiros ou esqueletos. Esse é o padrão de boa parte das charges políticas pelos países árabes, que tratam mais de relações externas que internas, com senso de humor mais burlesco que irônico.
Com a controvérsia, nas últimas semanas, das charges dinamarquesas que retratam o profeta Muhammad -algumas delas vinculam sua imagem ao terrorismo, como uma em que ele usa um turbante-bomba- aumentaram as charges contra Israel.
"Não temos nada a ver com isso, mas é comum Israel virar o alvo árabe em qualquer polêmica, inclusive a polêmica sobre o programa nuclear iraniano", diz Susan Heller-Pinto, diretora de estudos de Oriente Médio da ADL (Liga Anti-Difamação), grupo que analisa a imprensa e as charges árabes para rastrear e expor tendências anti-semitas.
Um exemplo é uma charge que pede um boicote a produtos dinamarqueses -no caso um queijo podre em forma de estrela de Davi- publicada no diário "Akhbar al Khalij", de Bahrein.
Para o chargista palestino Baha Boukhari, que publica no "Al Ayyam", nos territórios palestinos, as charges dinamarquesas são "tecnicamente pobres" e não deveriam ter sido levadas a sério.
"Claro que respeitamos a liberdade de expressão, mas há uma diferença entre opinar e insultar nações e religiões. Eu culpo líderes árabes por abordar a questão de forma a incitar extremistas e ignorantes", disse Boukhari. "Meu trabalho como chargista é criar um sorriso, não a raiva."
O conflito árabe-israelense é sempre um destaque, alvo fácil quando governos árabes restringem ou limitam as autocríticas, e muitas charges são consideradas anti-semitas por ativistas judeus e estrangeiros por cruzar a linha política e entrar em campo histórico e religioso.
Porém, conforme apontam analistas nos Estados Unidos e em Israel, houve uma evolução qualitativa nas charges pelo mundo árabe, que começam a abordar frontalmente questões como o terrorismo e a opressão de governos autoritários e antidemocráticos -até em países de regime islâmico, como a Arábia Saudita.
Para Geoff Porter, analista da consultoria de risco político Eurasia, as charges no norte da África tendem a ter humor mais sardônico e irônico que na região do Egito, territórios palestinos, Líbano e Síria, que teriam humor menos sofisticado e mais zombeteiro. Porter acompanha e traduz a mídia árabe e, na sua avaliação, a vilificação de figuras ocidentais é homóloga ao que ocorre nas charges européias ou americanas.
"Eu tenho o cuidado de verificar se a vilificação é maior do que no ocidente", afirmou ele à Folha. "Mas o que vi até agora é que as figuras políticas são brutalizadas, sem rédeas, tanto quanto líderes muçulmanos. Os principais exemplos são o Muammar Gaddafi [ditador da Líbia] e [o presidente iraniano] Mahmoud Ahmadinejad."
Porter nota que, em países de governo islâmico, o controle de governo previne a sátira de questões internas. Por conta disso, a política internacional vira o foco favorito.
Ainda assim, muitas charges abordam assuntos delicados, como uma publicada no Líbano sobre métodos de "suicídio": franceses na banheira, soviéticos com tiros de roleta russa e sírios com execuções por agentes secretos.
Outros exemplos incluem ironias com o teor pseudodemocrático das eleições presidenciais egípcias, o autoritarismo e a falta de reformas em vários países árabes, além do terrorismo.

Terrorismo
Segundo a pesquisadora Aluma Dankowitz, do Memri (Instituto de Pesquisa da Mídia do Oriente Médio, com sedes em Washington e Jerusalém), atentados terroristas só viraram tema de charges árabes quando o problema atinge a região.
"Foi somente quando extremistas islâmicos começaram a alvejar outros muçulmanos em países árabes que surgiu um debate sobre ataques suicidas em nome da religião", afirma Dankowitz. Em seus estudos, ela aponta charges que mostram o terrorismo como algo equivalente ao nazismo ou como uma faca nas costas dos países árabes.
Muitas das charges, porém, mostram que os Estados Unidos alimentaram o terrorismo (com uma mamadeira em forma de míssil, por exemplo, como o desenho nesta página) ao invadirem o Afeganistão e o Iraque.
Na Arábia Saudita, uma charge criticou a opressão do povo, retratado preso numa garrafa de "Absolute Power", alusão à vodca Absolut -álcool é proibido no país. Uma charge palestina ironiza a vitória do grupo terrorista Hamas, mostrando o povo preocupado apenas em saber se vão receber salário -a Autoridade Nacional Palestina é o maior empregador da população.
Quando o assunto é religião, as charges se aproximam de território arriscado. A rigor, o islã proíbe imagens de profetas para evitar a idolatria. Portanto, nenhuma das três religiões monoteístas -judaísmo, cristianismo e islamismo- é satirizada frontalmente.
"Há restrição religiosa, sobretudo com o islã. Mas, para ser justo, isso ocorre do mesmo modo que nos Estados Unidos há restrição com o judaísmo e o cristianismo: é politicamente incorreto e haverá forte repercussão entre grupos religiosos", disse Porter.
A questão é mais complexa sob o ponto de vista da ADL. "Às vezes, a estrela de Davi é usada como um símbolo legítimo -afinal, está na bandeira israelense. Mas as vezes está ligada a um sentimento antijudeu", disse Susan Heller-Pinto, fazendo referência a uma charge com um palestino crucificado na estrela de Davi, em alusão à morte de Jesus Cristo.
Para ela, linha é cruzada quando há desrespeito à memória da morte de judeus no Holocausto, com vulgarizações da história ou comparações provocativas do nazismo com Israel.


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