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HORROR
Descrição de madrilenhos lembra tragédia americana; governo convoca protesto para hoje
Espanha se sente no 11 de Setembro
DO COLUNISTA DA FOLHA, EM MADRI
O 11 de março de 2004, o dia do
horror em Madri, deixa um som e
deixa um cheiro.
O cheiro é de carne queimada,
conta Nacho Benito, que esperava
o trem na estação de Santa Eugenia, uma dos três locais atingidos,
e se apressou socorrer as vitimas.
"Lembro-me de uma senhora,
acho que era romena, cuja carne
cheirava a queimado. Causava-me repulsa, ao mesmo tempo em
que eu queria ajudar", descreve.
Os ruídos também marcavam
semelhança com as descrições sobre o 11 de setembro de 2001 em
Nova York: o centro de Madri se
transformou numa impressionante cacofonia de sons vindos
das ambulâncias, dos helicópteros sobre as zonas atingidas, de
gritos de bombeiros e policiais
tentando estabelecer um mínimo
de ordem no caos.
No caos ou no "desafio de sangue e morte contra nossos valores, a liberdade e o Estado de Direito", como descreveu o candidato da oposição às eleições de
domingo, o socialista José Luis
Rodríguez Zapatero.
Mas o som mais lúgubre era o
som do silêncio: vinha do meio
das ferragens distorcidas dos vagões atingidos pelas bombas e
saía dos celulares que não paravam de tocar. Mas seus donos já
não podiam responder.
A busca por informações levou
ao colapso o serviço de telefonia
móvel. O trânsito parou. Os trens,
como é óbvio, também.
"São horas de horror e raiva",
dizia Mariano Rajoy, o candidato
do governo às eleições de domingo, o primeiro a anunciar que a
campanha eleitoral estava suspensa, decisão que todos os partidos acompanhariam em seguida.
Horror era precisamente o que
sentia Enrique Sánchez, motorista de uma das primeiras ambulâncias a chegar a Atocha: "Isto
supera a ficção. Havia muito pânico nos rostos, muita gente surda,
cortes abundantes nos rostos,
muito sangue".
Horror também, maior talvez,
sentia o estudante de direito Alberto Hinojosa, que esperava na
plataforma de Santa Eugenia a
chegada do trem quando ouviu a
explosão: "Tudo cheirava a carne
queimada", conta.
Carne queimada dos mortos,
que ficaram presos nos vagões
mais atingidos ou caíram na via
férrea e foram piedosamente cobertas pelos bombeiros, policiais
e voluntários com mantas, papel
metálico, o que houvesse à mão.
Se no 11 de Setembro houve um
segundo impacto contra as torres
gêmeas, no "11 de Março" de Madri houve também uma segunda
explosão.
Mercedes Soria, empregada de
loja, conta que, depois da primeira explosão em Atocha, "as pessoas corriam para as escadas de
saída, em pânico, quando houve a
segunda explosão, acelerando o
pânico".
O pânico e o número de mortos
teriam sido maiores ainda se tivesse explodido a bomba mais
potente, a que estava no vagão da
frente do trem de Atocha.
Cada uma das bombas tinha explosivos suficientes para fazer
com que um grande pedaço do
trem explodido em Santa Eugenia
ficasse incrustado em uma concessionária de veículos bem em
frente à estação.
Azucena Martínez, 34, secretária, conta que, quando houve a
explosão na estação de Santa Eugenia, sua primeira reação foi a de
achar que tinham caído os cabos
que conectam o trem à rede elétrica. "De repente, todo mundo começou a correr, todo mundo estava cheio de sangue e, no trem, as
pessoas estavam destroçadas."
Ao contrário do 11 de Setembro,
em que a maioria dos cadáveres
desapareceu sob um monte de escombros, em Madri mortos e feridos ficaram expostos, gerando cenas capazes de assombrar até veteranos dos serviços de emergência, como Fernando Sanjosé, voluntário da Cruz Vermelha.
Sanjosé trabalhava perto de
Atocha e correu para ajudar. Mas,
conta, "era quase impossível retirar os cadáveres em meio ao monte de ferros retorcidos". "Tomei o
pulso de alguém, mas não havia
sinal de vida."
Tampouco havia sinal de vida
no corpo que Laura Espinoza,
uma senhora de 62 anos, teve de
mover um pouco para alcançar
sua bolsa, que havia ficado sob o
cadáver, após a explosão no trem
do Pozo del Tío Raimundo.
Como no 11 de Setembro, a solidariedade explodiu junto com a
raiva e o horror. Quatro pessoas a
cada 15 minutos se apresentavam
aos postos fixos ou móveis de
doação de sangue. Tanto que, às
11h (7h em Brasília), menos de
quatro horas depois da primeira
explosão, as autoridades informavam que já estavam cobertas as
necessidades de sangue.
Não era a única evidência de solidariedade: se não surgiram, de
imediato, bandeiras espanholas
em pencas, ao contrário de Nova
York, surgiram, sim, em pencas,
as mantas jogadas das janelas dos
prédios próximos aos locais atingidos, para cobrir os feridos, cujas
roupas estavam em pedaços.
Não só as roupas. José Luis, que
não diz o sobrenome, conta que
nunca esquecerá a cena de "uma
mulher correndo, com a perna esquerda solta, dependurada".
Ao horror, acrescentavam-se os
boatos: que outra bomba havia
explodido em tal ou qual lugar,
que não era o ETA, mas a Al Qaeda, que as eleições haviam sido
canceladas porque se esperavam
novos atentados, que...
A hipótese de novos atentados
era de fato levada a sério pelos policiais, pelo menos os que atenderam as vítimas do Pozo del Tío
Raimundo: eles cobriram com
colchonetes das crianças os berços da creche La Cenicienta (a
Cinderela), para protegê-las.
Como no 11 de Setembro, a solidariedade explodiu junto com a raiva e o horror. Quatro pessoas a cada 15 minutos se apresentavam aos postos de doação de sangue
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Assistentes sociais de todas as
partes da cidade se ofereceram
aos hospitais para atender parentes das vítimas, que se apresentavam em busca de
informações que
só saiam a conta-gotas, pelas dimensões da tragédia.
Mais necessários eram os psicólogos designados para o gigantesco necrotério
improvisado em
um local habitualmente de festa. A
ala seis do Parque
Ferial Juan Carlos
1º, local de feiras
de Madri, com
10,6 mil m2, foi reservada para receber os cadáveres.
Por volta das
12h30 (8h30 em
Brasília), começou a chegar ao
parque o que se transformaria numa procissão de carros fúnebres,
levando cadáveres para que a
identificação policial. Depois, a
procissão era de pais em busca de
filhos, de filhos em busca de pais
ou mães, de mulheres querendo
saber de maridos, de irmãos que
buscavam irmãs.
Assistentes sociais e psicólogos
eram mais do que necessários, se
fosse verdadeira a história que se
contava à porta do Hospital 12 de
Octubre, que atendeu a 257 feridos: dizia-se que uma senhora ficou sentada em um banco, na saída de Atocha, em estado de choque. Quando tentaram atendê-la,
recusou. Dizia sentir-se culpada
por estar viva quando todos a seu
lado haviam morrido.
Havia, em todo o caso, uma
grande diferença entre o 11 de Setembro e Madri: a discrição das
autoridades espanholas.
A rainha Sofia, seu filho, o príncipe Felipe, e sua noiva Letizia Ortiz visitaram à tarde hospitais que
estavam atendendo as vítimas.
Mas os jornalistas não tiveram
acesso ao salão especialmente
preparados para que a família real
conversasse com familiares das
vítimas em estado grave e com os
feridos mais leves.
Um deles, ao
sair caminhando
do hospital 12 de
Octubre, contou à
agência de notícias France Presse
que a rainha, o filho e sua futura
nora haviam sido
"muito amáveis,
como sempre, e
desejaram boa
sorte aos feridos".
Mas, no Hospital Clínico, a rainha chegou às lagrimas, depois de
ouvir fortes reclamações do parente de uma das vítimas internadas.
Depois, o homem
pediu desculpas.
A rainha as concedeu.
Ao anoitecer, 12 horas depois
dos atentados, Madri, a Espanha
toda, vestia luto, a começar pelas
telas das TVs, que exibiam todas,
no alto, uma pequena bandeira
vermelha e amarela do país com
um laço negro no meio.
O luto levou milhares de pessoas a espontaneamente se concentrar nas praças das grandes cidades, de Barcelona a Madri, de
Cádiz a Sevilha, antecipando-se
ao protesto contra o terror que o
governo convocou para hoje.
A noite avançava, o luto também: cinemas, teatros, museus,
orquestras, todo o mundo do espetáculo não abriu as portas.
Uma cidade que vive intensamente a noite transferia seu movimento para o improvisado necrotério,
para os hospitais, e para as estações de trem em que começavam
os trabalhos de recuperação.
(CLÓVIS ROSSI)
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