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ARTIGO
Um grito feminista contra a militarização dos EUA
CYNTHIA ENLOE
Muitos progressistas se chocaram com a reação militarista dos
EUA aos ataques de 11 de setembro de 2001, mas as feministas não
se surpreenderam. Elas já vinham
acompanhando a militarização
do cotidiano americano -desde
os sobrevôos de bombardeiros
durante o Super Bowl até a ostentação de fitas amarelas em carros
de famílias- e sua ligação estreita com o culto à masculinidade
que, recentemente, vem se intensificando na política americana.
Os rituais militaristas determinados pelo gênero já estão tão integrados à cultura dos EUA que se
tornaram quase invisíveis -e é
por isso mesmo que é tão importante reexaminá-los.
Tomemos o caso dos sobrevôos. O que há de divertido em se
enviar uma formação aérea
ameaçadora formada por veículos de morte e destruição para sobrevoar uma partida de futebol
americano numa tarde de domingo? É preciso coordenação entre a
Liga Nacional de Futebol (NFL,
em inglês) e o Pentágono para
planejar tal sobrevôo. Será que
enviar um bombardeiro preto pelo céu confirma a virilidade dos
jogadores e torcedores? O espetáculo teria por objetivo confirmar
as credenciais patrióticas dos jogadores, proprietários dos clubes,
torcedores e redes de televisão? Se
for isso, então a NFL e o Pentágono estão em conluio para militarizar a masculinidade e masculinizar o militarismo.
E o que dizer dos ímãs onipresentes, mostrando uma fita amarela, que tantos americanos vêm
grudando em seus carros para
anunciar que "apóiam nossas tropas"? Para um governo determinado a travar uma guerra, a adesão popular é tão importante
quanto a alocação de verbas. É
preciso alguém na família para
comprar o ímã amarelo e fixá-lo
ao carro. Será que foi a mãe da família, declarando ao mundo que
seu zelo materno se estende aos filhos e filhas militares de outras
mães? Terá sido o pai da família,
tentando transmitir alguma coisa
sobre seu papel de pai ou sobre
sua identidade de militar veterano? Em algumas famílias, é uma
combinação complementar das
duas coisas. De uma maneira ou
outra, não se trata de um gesto
apolítico e inócuo, como poderia
parecer.
Ao prestar atenção ao funcionamento diário da militarização, as
feministas a expõem como um
processo que se dá passo a passo e
através do qual instituições e
idéias -o casamento, uma liga
esportiva, a presidência, uma
agência publicitária, conceitos de
lealdade, responsabilidade, honra
ou segurança- passam a depender dos militares ou dos valores e
das metas militaristas para ter respeitabilidade e credibilidade.
Ademais, as feministas sabem
que a militarização pode acontecer em qualquer lugar -não apenas num campo de batalha ou por
trás das portas fechadas de uma
agência de inteligência, mas também na sala de um orientador escolar, na reunião editorial de um
jornal, em uma audiência no
Congresso, em um movimento
pela paz, em um bordel ou em
volta da mesa de jantar da família.
Uma reunião editorial de jornal
se militariza a cada vez que fatos
militares ou ocorridos na zona de
guerra são vistos como notícias
mais urgentes do que a imposição, pelo governo, de uma regra
que vincula a ajuda a países estrangeiros ao combate ao aborto.
Nós, feministas americanas, devemos às militantes feministas de
outros países muito do que sabemos sobre a maneira como esses
processos dependem do silêncio,
dos elogios e do serviço prestado
pelas mulheres. Elas nos ensinaram a prestar atenção às políticas
militares em relação à prostituição e ao discurso nacionalista de
proteção masculina e gratidão feminina. Mulheres ativistas -na
Sérvia, Índia, Japão, Chile, Coréia
do Sul, Filipinas, África do Sul,
Argentina, Turquia, Birmânia ou
Ruanda- nos ensinaram a sempre levar o estupro a sério e nunca
nos contentarmos com versões
prontas sobre "saques, pilhagem
e estupros". É por essa razão que,
hoje, as feministas americanas
vêm pressionando a administração do presidente George W.
Bush para que divulgue os fatos
que cercam as dezenas de casos
relatados de estupros de mulheres
militares americanas por soldados americanos e sobre o tratamento dado a iraquianas detidas
em centros de detenção sob controle americano.
Não basta concentrarmos nossa
atenção sobre o complexo militar-industrial, o petróleo e o império. Se não atribuirmos a devida
importância à política da feminilidade e da masculinidade, jamais
chegaremos ao fundo daquilo que
alimenta a militarização. Nunca
conseguiremos reverter esse processo, porque não saberemos o
que o impele adiante.
Estratégias antimilitarização
A percepção das feministas de
que a militarização está entremeada ao cotidiano inspirou estratégias antimilitarização que colocam em cheque idéias e práticas
aparentemente triviais. No verão
passado, as jovens ativistas inteligentes do Centro de Recursos de
Mulheres de Cor de Oakland (Califórnia) promoveram um desfile
de moda antimilitarista. Num teatro lotado, estilistas do hip-hop,
rappers e ativistas locais se indagaram se usar camisetas e calças
cargo de estilo militar subverte a
militarização local ou se, pelo
contrário, sem querer aprofunda
ainda mais suas raízes nas comunidades de cor. O que é ser bacana, e o que é estar em conluio?
A criação de dois grupos ativistas de âmbito nacional, Military
Families Speak Out (algo como
Famílias Militares Dizem a Que
Vieram) e o Gold Star Mothers
Against the War (Mães Estrela de
Ouro Contra a Guerra), reflete
uma nova consciência dos papéis
que se espera que as mães -e
também os pais- desempenhem
na formação de uma grande força
militar, além da consciência crescente da necessidade urgente de
alternativas a esses papéis previamente escritos. Esses grupos começam a encontrar uma nova linguagem materna para explicar a
seus próprios integrantes e a outros cidadãos como é possível ser
pai ou mãe zeloso e, ao mesmo
tempo, se opor ao uso que o governo faz de seus filhos para implementar uma política externa
equivocada.
Como sempre acontece, a politização das mães está deixando o
Pentágono nervoso. O Comando
de Recrutamento do Pentágono e
suas agências de publicidade contratadas acabam de investir milhões de dólares na reformulação
de anúncios voltados às mães de
potenciais recrutas.
O Dia Internacional da Mulher,
comemorado na última quarta-feira, é um bom momento para
todos os que criticam a "guerra ao
terror" lançada pela administração Bush começarem a levar a sério os insights feministas. As feministas americanas -reunidas
em grupos como Women in
Black (Mulheres de Preto), Liga
Internacional de Mulheres pela
Paz e a Liberdade, Code Pink (Código Cor de Rosa), Women Waging Peace (Mulheres que Travam
a Paz)- são inteligentes, ademais, porque ouvem atentamente
as mulheres de outros países
quando estas analisam e contestam as minúcias militarizadas do
cotidiano. Juntas, elas estão deixando muita gente nervosa. E isso
é uma boa notícia.
Cynthia Enloe é professora na Universidade Clark e autora de "The Curious Feminist: Searching for Women in a New
Age of Empire" (a feminista curiosa: em
busca das mulheres na nova era do império). Copyright Agence Global.
Tradução de Clara Allain
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