São Paulo, domingo, 12 de março de 2006

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ARTIGO

Um grito feminista contra a militarização dos EUA

CYNTHIA ENLOE


Muitos progressistas se chocaram com a reação militarista dos EUA aos ataques de 11 de setembro de 2001, mas as feministas não se surpreenderam. Elas já vinham acompanhando a militarização do cotidiano americano -desde os sobrevôos de bombardeiros durante o Super Bowl até a ostentação de fitas amarelas em carros de famílias- e sua ligação estreita com o culto à masculinidade que, recentemente, vem se intensificando na política americana.
Os rituais militaristas determinados pelo gênero já estão tão integrados à cultura dos EUA que se tornaram quase invisíveis -e é por isso mesmo que é tão importante reexaminá-los.
Tomemos o caso dos sobrevôos. O que há de divertido em se enviar uma formação aérea ameaçadora formada por veículos de morte e destruição para sobrevoar uma partida de futebol americano numa tarde de domingo? É preciso coordenação entre a Liga Nacional de Futebol (NFL, em inglês) e o Pentágono para planejar tal sobrevôo. Será que enviar um bombardeiro preto pelo céu confirma a virilidade dos jogadores e torcedores? O espetáculo teria por objetivo confirmar as credenciais patrióticas dos jogadores, proprietários dos clubes, torcedores e redes de televisão? Se for isso, então a NFL e o Pentágono estão em conluio para militarizar a masculinidade e masculinizar o militarismo.
E o que dizer dos ímãs onipresentes, mostrando uma fita amarela, que tantos americanos vêm grudando em seus carros para anunciar que "apóiam nossas tropas"? Para um governo determinado a travar uma guerra, a adesão popular é tão importante quanto a alocação de verbas. É preciso alguém na família para comprar o ímã amarelo e fixá-lo ao carro. Será que foi a mãe da família, declarando ao mundo que seu zelo materno se estende aos filhos e filhas militares de outras mães? Terá sido o pai da família, tentando transmitir alguma coisa sobre seu papel de pai ou sobre sua identidade de militar veterano? Em algumas famílias, é uma combinação complementar das duas coisas. De uma maneira ou outra, não se trata de um gesto apolítico e inócuo, como poderia parecer.
Ao prestar atenção ao funcionamento diário da militarização, as feministas a expõem como um processo que se dá passo a passo e através do qual instituições e idéias -o casamento, uma liga esportiva, a presidência, uma agência publicitária, conceitos de lealdade, responsabilidade, honra ou segurança- passam a depender dos militares ou dos valores e das metas militaristas para ter respeitabilidade e credibilidade. Ademais, as feministas sabem que a militarização pode acontecer em qualquer lugar -não apenas num campo de batalha ou por trás das portas fechadas de uma agência de inteligência, mas também na sala de um orientador escolar, na reunião editorial de um jornal, em uma audiência no Congresso, em um movimento pela paz, em um bordel ou em volta da mesa de jantar da família.
Uma reunião editorial de jornal se militariza a cada vez que fatos militares ou ocorridos na zona de guerra são vistos como notícias mais urgentes do que a imposição, pelo governo, de uma regra que vincula a ajuda a países estrangeiros ao combate ao aborto.
Nós, feministas americanas, devemos às militantes feministas de outros países muito do que sabemos sobre a maneira como esses processos dependem do silêncio, dos elogios e do serviço prestado pelas mulheres. Elas nos ensinaram a prestar atenção às políticas militares em relação à prostituição e ao discurso nacionalista de proteção masculina e gratidão feminina. Mulheres ativistas -na Sérvia, Índia, Japão, Chile, Coréia do Sul, Filipinas, África do Sul, Argentina, Turquia, Birmânia ou Ruanda- nos ensinaram a sempre levar o estupro a sério e nunca nos contentarmos com versões prontas sobre "saques, pilhagem e estupros". É por essa razão que, hoje, as feministas americanas vêm pressionando a administração do presidente George W. Bush para que divulgue os fatos que cercam as dezenas de casos relatados de estupros de mulheres militares americanas por soldados americanos e sobre o tratamento dado a iraquianas detidas em centros de detenção sob controle americano.
Não basta concentrarmos nossa atenção sobre o complexo militar-industrial, o petróleo e o império. Se não atribuirmos a devida importância à política da feminilidade e da masculinidade, jamais chegaremos ao fundo daquilo que alimenta a militarização. Nunca conseguiremos reverter esse processo, porque não saberemos o que o impele adiante.

Estratégias antimilitarização
A percepção das feministas de que a militarização está entremeada ao cotidiano inspirou estratégias antimilitarização que colocam em cheque idéias e práticas aparentemente triviais. No verão passado, as jovens ativistas inteligentes do Centro de Recursos de Mulheres de Cor de Oakland (Califórnia) promoveram um desfile de moda antimilitarista. Num teatro lotado, estilistas do hip-hop, rappers e ativistas locais se indagaram se usar camisetas e calças cargo de estilo militar subverte a militarização local ou se, pelo contrário, sem querer aprofunda ainda mais suas raízes nas comunidades de cor. O que é ser bacana, e o que é estar em conluio?
A criação de dois grupos ativistas de âmbito nacional, Military Families Speak Out (algo como Famílias Militares Dizem a Que Vieram) e o Gold Star Mothers Against the War (Mães Estrela de Ouro Contra a Guerra), reflete uma nova consciência dos papéis que se espera que as mães -e também os pais- desempenhem na formação de uma grande força militar, além da consciência crescente da necessidade urgente de alternativas a esses papéis previamente escritos. Esses grupos começam a encontrar uma nova linguagem materna para explicar a seus próprios integrantes e a outros cidadãos como é possível ser pai ou mãe zeloso e, ao mesmo tempo, se opor ao uso que o governo faz de seus filhos para implementar uma política externa equivocada.
Como sempre acontece, a politização das mães está deixando o Pentágono nervoso. O Comando de Recrutamento do Pentágono e suas agências de publicidade contratadas acabam de investir milhões de dólares na reformulação de anúncios voltados às mães de potenciais recrutas.
O Dia Internacional da Mulher, comemorado na última quarta-feira, é um bom momento para todos os que criticam a "guerra ao terror" lançada pela administração Bush começarem a levar a sério os insights feministas. As feministas americanas -reunidas em grupos como Women in Black (Mulheres de Preto), Liga Internacional de Mulheres pela Paz e a Liberdade, Code Pink (Código Cor de Rosa), Women Waging Peace (Mulheres que Travam a Paz)- são inteligentes, ademais, porque ouvem atentamente as mulheres de outros países quando estas analisam e contestam as minúcias militarizadas do cotidiano. Juntas, elas estão deixando muita gente nervosa. E isso é uma boa notícia.


Cynthia Enloe é professora na Universidade Clark e autora de "The Curious Feminist: Searching for Women in a New Age of Empire" (a feminista curiosa: em busca das mulheres na nova era do império). Copyright Agence Global.

Tradução de Clara Allain


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