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São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 2003

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DEPOIMENTO

Calor escancara as distinções de classe

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM BUDAPESTE

Assim como São Paulo, cidade oficialmente tropical, prescindiu sempre de calefação, mesmo quando, nos invernos dos anos 70 e 80, os termômetros ostentavam um solitário dígito, a Europa, que, segundo todos os manuais, pertence à zona temperada, ainda não desenvolveu o apego americano pelo aparelho que tornou habitável, por exemplo, o Texas, ou seja, o ar-condicionado.
Por causa disso, nestes dias em que as temperaturas vêm oscilando entre o crematório e o inferno, as distinções de classe, habitualmente camufladas pela correção política social-democrata, saltam aos olhos ou, mais precisamente, jorram aos borbotões pelos poros. Hotéis com menos de quatro estrelas não costumam dispor de climatização e o mesmo vale para a maioria dos bares, cafés, restaurantes etc., seja em Paris e Londres, seja em Zurique ou Viena. Em Paris, aliás, se os cinemas registraram recordes de bilheteria, não foi devido nem à cinefilia tradicional de seus habitantes nem à qualidade dos filmes da estação: o projetor também foi eclipsado pelo condicionador de ar.
Embora a imprensa australiana zombe do pânico britânico, lembrando que em Sydney ou Melbourne ninguém sequer arregaça as mangas antes dos 45oC, a verdade é que o sul do continente em particular, e Sevilha está entre os casos mais graves, andou descobrindo uma das razões que levam os habitantes da África subsaariana a abandonar sua terra natal.
A presente onda, no entanto, é menos incomum do que se poderia imaginar. O calor de julho e agosto de 1994, quando passei pela Áustria, a Hungria e o norte da Itália, não foi, que eu lembre, mais ameno do que o de hoje em Budapeste. Meu verão italiano de 98 talvez tenha tido dias piores. Curiosamente, as temperaturas de Florença, em virtude de sua topografia, superavam as de Nápoles, no sul. Mas o inferno acima de 40oC em que se convertera então a Sicília só encontrava rivais na Grécia e na Sardenha.
Como isso é a Europa, não é porque línguas e gargantas se desidrataram que as pessoas deixam de aquecer ainda mais o ambiente com suas picuinhas políticas tradicionais, perguntando-se se não seriam os ianques, por não aderirem ao Protocolo de Kyoto, os responsáveis pelo que está acontecendo. Não que alguém realmente o saiba. Já que os cientistas, reconhecendo a complexidade do fenômeno e a escassez de dados confiáveis, evitam as conclusões taxativas, estas se confinam ao âmbito dos debates ideológicos. Quem afirme que a onda de calor foi provocada pela ação humana, especificamente pela ganância capitalista, é um sujeito decente. Quem quer que nem tanto o negue, quanto exponha alguma dúvida, é um porco reacionário.
E uma vez que estamos falando sobre esses bichos, convém ter em mente que, enquanto todos os europeus estão suando como porcos, os suínos propriamente ditos não suam. Daí que, quando o sol incide diretamente sobre sua pele, eles se sentem compelidos a se proteger com o filtro solar que têm por perto: a lama. Apesar disso, não é o porco que dá o nome a essa temporada tórrida, mas sim o cão. Essas semanas insuportáveis são chamadas de "canícula" ("cadelinha", em latim) ou, em inglês, de "dog days". Assim, o filme "Dog Day Afternoon", 1975, de Sidney Lumet, deveria ter sido traduzido não como "Um Dia de Cão", mas sim de calor, pois o cachorro em questão não é dos que latem ou mordem. Trata-se de uma estrela, Sírio, da constelação do Cão Maior e, a acreditar nos antigos, é o fato de ela estar, nesta época do ano, em conjunção com o Sol que gera tamanho calor.


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