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DEPOIMENTO
Calor escancara as
distinções de classe
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM BUDAPESTE
Assim como São Paulo, cidade
oficialmente tropical, prescindiu
sempre de calefação, mesmo
quando, nos invernos dos anos 70
e 80, os termômetros ostentavam
um solitário dígito, a Europa, que,
segundo todos os manuais, pertence à zona temperada, ainda
não desenvolveu o apego americano pelo aparelho que tornou
habitável, por exemplo, o Texas,
ou seja, o ar-condicionado.
Por causa disso, nestes dias em
que as temperaturas vêm oscilando entre o crematório e o inferno,
as distinções de classe, habitualmente camufladas pela correção
política social-democrata, saltam
aos olhos ou, mais precisamente,
jorram aos borbotões pelos poros. Hotéis com menos de quatro
estrelas não costumam dispor de
climatização e o mesmo vale para
a maioria dos bares, cafés, restaurantes etc., seja em Paris e Londres, seja em Zurique ou Viena.
Em Paris, aliás, se os cinemas registraram recordes de bilheteria,
não foi devido nem à cinefilia tradicional de seus habitantes nem à
qualidade dos filmes da estação: o
projetor também foi eclipsado pelo condicionador de ar.
Embora a imprensa australiana
zombe do pânico britânico, lembrando que em Sydney ou Melbourne ninguém sequer arregaça
as mangas antes dos 45oC, a verdade é que o sul do continente em
particular, e Sevilha está entre os
casos mais graves, andou descobrindo uma das razões que levam
os habitantes da África subsaariana a abandonar sua terra natal.
A presente onda, no entanto, é
menos incomum do que se poderia imaginar. O calor de julho e
agosto de 1994, quando passei pela Áustria, a Hungria e o norte da
Itália, não foi, que eu lembre, mais
ameno do que o de hoje em Budapeste. Meu verão italiano de 98
talvez tenha tido dias piores. Curiosamente, as temperaturas de
Florença, em virtude de sua topografia, superavam as de Nápoles,
no sul. Mas o inferno acima de
40oC em que se convertera então a
Sicília só encontrava rivais na
Grécia e na Sardenha.
Como isso é a Europa, não é
porque línguas e gargantas se desidrataram que as pessoas deixam
de aquecer ainda mais o ambiente
com suas picuinhas políticas tradicionais, perguntando-se se não
seriam os ianques, por não aderirem ao Protocolo de Kyoto, os
responsáveis pelo que está acontecendo. Não que alguém realmente o saiba. Já que os cientistas,
reconhecendo a complexidade do
fenômeno e a escassez de dados
confiáveis, evitam as conclusões
taxativas, estas se confinam ao
âmbito dos debates ideológicos.
Quem afirme que a onda de calor
foi provocada pela ação humana,
especificamente pela ganância capitalista, é um sujeito decente.
Quem quer que nem tanto o negue, quanto exponha alguma dúvida, é um porco reacionário.
E uma vez que estamos falando
sobre esses bichos, convém ter em
mente que, enquanto todos os europeus estão suando como porcos, os suínos propriamente ditos
não suam. Daí que, quando o sol
incide diretamente sobre sua pele,
eles se sentem compelidos a se
proteger com o filtro solar que
têm por perto: a lama. Apesar disso, não é o porco que dá o nome a
essa temporada tórrida, mas sim
o cão. Essas semanas insuportáveis são chamadas de "canícula"
("cadelinha", em latim) ou, em
inglês, de "dog days". Assim, o filme "Dog Day Afternoon", 1975,
de Sidney Lumet, deveria ter sido
traduzido não como "Um Dia de
Cão", mas sim de calor, pois o cachorro em questão não é dos que
latem ou mordem. Trata-se de
uma estrela, Sírio, da constelação
do Cão Maior e, a acreditar nos
antigos, é o fato de ela estar, nesta
época do ano, em conjunção com
o Sol que gera tamanho calor.
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