São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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Um corpo na calçada, uma cena de horror

DO ENVIADO ESPECIAL

Uma cabeça ensanguentada e um rosto que parecia ter perdido a pele, ressaltando apenas os dentes, permaneceu estendido na calçada em frente à padaria da rua Jaffa, a loja mais próxima do ponto de ônibus em que foi praticado o atentado de ontem.
Só às 17h45 (11h45 em Brasília), o corpo foi removido, no saco de plástico negro com um número 10 pregado. Foi apenas uma das cenas de horror vistas e vividas ontem nessa rua tão central e tão característica de Jerusalém.
Horror contínuo, aliás. Witzhak Nissan, dono de uma lojinha de comestíveis e refrigerantes a uma esquina do ponto da explosão, diz que já viu cinco atentados por ali nos últimos anos. Culpa os europeus por eles. "Eles têm boa vida, democracia, mas apoiam ditaduras. Arafat não quer um Estado palestino, porque ele é um ditador, mas os europeus o apoiam", teoriza.
Não é o único ali a teorizar. A barreira montada pela polícia para impedir a aproximação de curiosos e jornalistas se transforma rapidamente em uma espécie de grande e caótico comício.
Um rabino, com longas barbas brancas, que se identifica apenas como Aaron, vai ao extremo delírio: "Nem os nazistas chegaram a este ponto", diz em impecável francês.
Outro "haredi" (temente a Deus), tranças longas no cabelo, critica o prefeito Ehud Olmert, que foi inspecionar o local do ataque (e por pouco não acabou atropelado por uma ambulância): "Peça perdão ao rabino Meir Kahane. Ele estava certo", grita o homem, aludindo a um rabino radical.
Em frente ao mercado Mahane Yehuda, onde a terrorista-bomba se explodiu, na rua Meyhuas, na verdade um beco, o comício ganha cartazes. Um deles mostra o líder palestino Iasser Arafat e prega: "Cortem a cabeça dele". No cartaz, a cabeça de Arafat já está separada do corpo.
Os europeus não são os únicos apontados como culpados. Outro cartaz no beco faz a rima: "Bush don't push" (Bush, não pressione). Alusão ao fato de que o presidente norte-americano vem insistindo há 10 dias, aliás inutilmente, para que Israel encerre a reocupação dos territórios palestinos "o quanto antes".
Quando o ministro da Segurança Interna, Uzi Landau, aparece, os gritos aumentam e o teor de xenofobia também. Outro religioso, com kipá totalmente negro à cabeça, grita para o ministro: "(O atentado) é a festa de boas-vindas para Powell. Fora com os goi" (os não-judeus).
Os gritos de guerra não são apenas dos mais radicais, dos mais religiosos. O filósofo Sari Nusseibeh, uma espécie de representante palestino em Jerusalém, conta que, faz um mês, reuniu-se com os pacifistas israelenses e deles ouviu que se consideram uma pequena minoria hoje.
"De 70% a 80% dos israelenses apoiam as políticas de Sharon contra os palestinos", concede Nusseibeh, que está muito longe de ter a mais leve simpatia pelo premiê de Israel.
Os atentados cometidos pelos palestinos são a causa óbvia do isolamento dos pacifistas e do crescimento de Sharon.
A cena do atentado é uma demonstração visual do porque. Há pedaços de corpos espalhados, misturados a restos de pão da padaria que fica junto ao ponto de ônibus em que ocorreu a explosão. O corpo do saco plástico número 10 está quase em cima de uma pilha de caixas já vazias de laranjas, morangos e outras frutas da "Delicate Iamini".
O ônibus até que ficou pouco danificado. "Teria sido muito pior se a explosão ocorresse dentro dele", diz o chefe de polícia Mickey Levy, que acabou saindo da cena com lágrimas nos olhos, amparados por auxiliares.
Lágrimas nos olhos também se viam em incontáveis pessoas que subiam a rua Jaffa, distanciando-se do local do crime, já isolado pela polícia. Celulares ao ouvido, pareciam contar o que acontecera a alguém, enquanto as lágrimas escorriam. Quando o sol começou a se pôr sobre Jerusalém, já não se ouviam as sirenes das ambulâncias, uma terrível sinfonia poucas horas antes.
E um homem de roupa toda preta, kipá idem, gritava junto à cerca que isolava o local do crime: "Eles nos matam, nós os matamos". Em seis palavras, uma descrição crua do que está ocorrendo em Israel e nos territórios palestinos. (CR)


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