São Paulo, domingo, 13 de junho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Revisão cambial arruína norte-coreanos

Desvalorização promovida por Pyongyang provoca pior crise desde fome que matou milhares na década de 90

Relatos revelam quadro econômico deprimente para locais; insatisfação cresce, porém ainda não é causa de instabilidade

DO "NEW YORK TIMES", YANJI (CHINA)

Os norte-coreanos estão acostumados a dificuldades. Mas a desvalorização cambial de novembro representou para alguns o pior desastre desde a onda de fome que matou centenas de milhares de pessoas nos anos 1990.
Entrevistas realizadas no mês passado com oito norte-coreanos que deixaram recentemente o país oferecem retrato deprimente sobre o desespero na Coreia do Norte e o crescente ressentimento contra o ditador Kim Jong-il.
O que parece estar ausente, por enquanto, é instabilidade social. A carestia, a ira popular pela desvalorização e a incerteza política enquanto Kim tenta fazer do filho caçula o seu sucessor não resultaram em resistência perceptível contra o governo.
Ao menos dois entrevistados na China repetiram a linha da propaganda de que a Coreia do Norte é vítima de inimigos inflexíveis, sua pobreza resulta de um complô ocidental, e sua sobrevivência está ameaçada por EUA, Coreia do Sul e Japão.
A acusação sul-coreana de que a rival afundou navio de sua Marinha de guerra em março não passa de outra parte do complô, disse a mulher de um líder partidário.

BEIRA DO ABISMO
Outros veem com mais ceticismo a propaganda do governo, mas ainda assim consideram uma guerra como inevitável. "Estamos sempre à espera de uma invasão", disse professora primária.
"Meu filho diz querer que a guerra venha, porque a vida é difícil demais e de qualquer jeito é provável que morramos todos de fome", contou.
Ela e outros norte-coreanos concederam entrevistas sob anonimato, em conversas em boa medida organizadas por igrejas clandestinas na China, ao norte da fronteira com a Coreia do Norte.
Cerca de metade dos entrevistados disse que planeja voltar à Coreia do Norte. Os demais esperam poder desertar para a Coreia do Sul.
A partir de fotos aéreas que revelam chaminés de fábricas das quais não sai fumaça, economistas estimam em até 75% suas fábricas ociosas.
A economia cambaleia seriamente desde 2006, quando Kim se retirou de negociações multilaterais para congelar seu programa nuclear.
A Coreia do Sul suspendeu quase todo o comércio, privando a rival de US$ 333 milhões ao ano em vendas de frutos do mar e outros itens.
Quando a península foi divida, em 1945, a Coreia do Sul era mais pobre que o vizinho.
Hoje, o trabalhador médio sul-coreano ganha 15 vezes mais que a média salarial da Coreia do Norte. Os desertores que chegam até a Coreia do Sul, pela China, aumentam há uma década, e chegaram a quase 3.000 em 2009.
A mortalidade infantil e materna subiu em ao menos 30% de 1993 a 2008, e a expectativa de vida caiu em três anos, para 69 anos, segundo dados dos EUA e da ONU.
A desvalorização cambial só agravou o sofrimento. O objetivo era desviar recursos da vasta economia paralela para as estatais, que enfrentam sérios deficits de caixa.
O governo tenta periodicamente reprimir os mercados, regulando preços, horários de funcionamento, tipos de produtos vendidos, idade e sexo dos comerciantes e até se transportam os produtos nas costas ou em bicicletas.

RESERVAS LIQUIDADAS
Em comunicado de 2007, Kim se queixou de que os mercados se haviam tornado "nascedouro de toda espécie de práticas não socialistas".
A desvalorização cambial de novembro os apanhou de surpresa. O governo decretou que o novo won, de valor mais alto, substituiria o velho won, mas as famílias só estariam autorizadas a converter 100 mil won, o equivalente a US$ 30 pela taxa de câmbio do mercado negro.
A medida simplesmente liquidou as reservas privadas.
Milhares de pessoas batalhavam freneticamente para transformar o dinheiro que em breve perderia o valor em alguma coisa mais tangível.
Certos preços subiram em 10.000%, segundo relato, antes que os comerciantes fechassem suas barracas, ao compreenderem que seus lucros também seriam inúteis.

ISOLAMENTO
Os norte-coreanos que jamais cruzaram a fronteira não têm como compreender o grau de seu sofrimento.
Não existe internet. As TVs e rádios só recebem canais do Estado. A punição por assistir a filmes e programas de TV estrangeiros é severa.
Mas as informações começam lentamente a se infiltrar.
Comerciantes que vão à China dizem que as pessoas lá são mais ricas e mais livres e que os sul-coreanos vivem ainda melhor. Alguns têm celulares conectados às redes chinesas de telefonia móvel e permitem que as pessoas os utilizem clandestinamente, por preços exorbitantes.


Texto Anterior: Rubens Ricupero: Desempate
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.