São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

análise

O mundo é um lugar mais perigoso

IGOR GIELOW
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Exceto que o imprevisível aconteça, a curta guerra na Geórgia pode ser dada como encerrada com uma vitória estratégica da Rússia. Cabe perguntar: após fracassar, o Ocidente conseguirá formular uma política coerente na relação com a renascida Moscou?
Nos anos seguintes ao fim da Guerra Fria, o carnaval de ilusões festivas dos anos Clinton proporcionou um modelo de relacionamento definido pela chamada Parceria pela Paz -um fórum de debate entre os membros da Otan e os países que orbitavam a antiga União Soviética. O clube, criado em 1994, ainda existe, mas só no papel.
Seguros da debacle russa após a crise econômica de 1998, que coroou uma década de desmonte da ex-superpotência, os líderes dos EUA e da Europa resolveram jogar no lixo o discurso pacifista e intervir em Kosovo. Impotente, a Rússia calou.
Por todos seus erros, o choque de realidade do 11 de Setembro e a política de George W. Bush tiveram ao menos o mérito de tirar o falso verniz humanitário da ação em Kosovo, amplificando o modelo quase ao paroxismo. Não se trata de defesa do que ocorreu: com a exceção do ataque inicial ao Taleban, é bem difícil achar justificativas para o monstro nascido após setembro de 2001.

Putin
O processo de acomodação dos antigos membros do Pacto de Varsóvia à nova Europa começou de fato em 1999, quando os três primeiros ex-comunistas entraram na Otan. Novamente, a Rússia apenas pôde torcer o nariz. Mas foi 2004 que assistiu a incorporação de outros sete membros, trazendo a aliança militar ocidental às bordas da Rússia.
A essa altura, Vladimir Putin já dava as cartas, e o país começava a colher os frutos da alta do petróleo que, ironicamente, se deve em parte justamente às políticas de Washington. Tolhendo liberdades, reestatizando a economia e firmando um grupo fechado no poder, Putin semeou o solo para a mostra de força no Cáucaso.
Enquanto podia, a Otan empurrou suas fronteiras a leste. Mas a Rússia já estava suficientemente ameaçadora quando o flerte com a Geórgia e a Ucrânia tomou corpo, e a solução foi fazer uma aposta nas chamadas "revoluções coloridas".
Só que a Revolução Laranja, na Ucrânia, deu no que deu: corrupção generalizada, desestabilização por parte de Moscou e uma crise atrás da outra. A Rosa, na Geórgia, criou o instável Mikhail Saakashvili, que se mostrou um péssimo estrategista ao dar a desculpa ideal para o passeio militar russo em seu país.

Cenário à frente
A relação carnal entre Saakashvili e Bush não deverá sobreviver ao próximo presidente americano -isso se o georgiano estiver no poder. A Geórgia foi perdida.
O Ocidente terá de reinventar seu olhar. Foram Alemanha e França que impediram a entrada da Geórgia na Otan, como queria Bush em abril deste ano. Mas teria a aceitação impedido o de- senrolar da crise no Cáucaso? Voltaríamos aos anos 60?
Isso tudo é especulação, a realidade está aí e é outra. Moscou está numa posição de força, a Europa vê seu plano energético alternativo ir para o espaço.
O Kremlin agora está na posição daquele conquistador romano que desfilava com os louros da vitória, descrito na cena final de "Patton": numa bela carruagem, mas com um escravo sussurrando ao seu ouvido que "toda a glória é efêmera". Assim, talvez movidos pelo sussurro, Putin e os seus irão atrás de novos acertos de contas, e o escudo antimísseis de Bush é apenas um deles.
Como o Ocidente lidará com isso? O pragmatismo militarista que o fim da era Bush prometia reduzir pode na verdade ter se ampliado; o mundo ficou um lugar mais perigoso.


Texto Anterior: Georgiano recebe apoio de ex-satélites soviéticos
Próximo Texto: "O agressor foi castigado", diz Moscou ao cessar fogo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.