São Paulo, terça-feira, 13 de setembro de 2011

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Vida noturna restrita sobrevive às guerras

Após anos de conflitos, Iraque tem noitadas com cerveja, prostituição e bingos; no Afeganistão, restam duelos de pipas

Enquanto o pop árabe é unanimidade em bares de Bagdá; outra mania nacional em Cabul é o culto ao fisiculturismo

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ E CABUL

Uma balada em Bagdá não parece exatamente o mais provável dos programas para quem está acostumado com a ideia de uma cidade desfigurada por anos de guerra, violência sectária, atentados, toques de recolher e barreiras de todos os tipos.
Mas a cidade tem, sim, uma vida noturna relativamente ativa, ainda que restrita, e com surpresas para o observador casual. Noitadas regadas a cerveja e destilado de anis escondem combinações tão exóticas quanto prostituição e bingos.
Álcool em país muçulmano? Pois é. Por conta do legado secularista da época da monarquia (1921-1958) e dos anos de Saddam Hussein (1968-2003), o consumo é visto com poucas reservas.
"Eu só parei de servir vinho aqui porque abriram o escritório da TV do Hizbollah aqui na frente, e ameaçaram explodir minha casa. Mas todos ainda me pedem", conta Mohammad, o gerente do único restaurante italiano da cidade fora dos domínios ocidentais -hotéis e a ultraprotegida Zona Verde.
Muçulmano não pode vender bebida, mas sempre há um cristão como o dono do Al Rif ou da minoria religiosa iezida disposto a fazer o sacrifício e auferir os lucros. Mas beber pode.
Os bares ficam concentrados num trecho da rua Abu Nawaz, à beira do rio Tigre.
Antigos restaurantes especializados no famoso peixe assado iraquiano, o masguf, viraram locais em que jovens pagam R$ 3,5 por uma garrafa de cerveja Carlsberg engarrafada no Curdistão, ou R$ 5 por uma garrafinha de araque, o destilado de anis.
A música é invariavelmente pop árabe em alto volume. Aqui e ali aparece uma moça solitária que aceita "passear" no matagal à beira rio pelo equivalente a R$ 40.
Uma versão mais sofisticada, por assim dizer, ocorre nos restaurantes da rua Arasat al Hindya. Locais como Al Awad ou o Blue Dan são frequentados por homens de negócios. Ali, as prostitutas eventuais são cantoras que se apresentam à noite.
Mas nunca estão na rua, como já alertava em 1943 o manual "Instrução para Soldados Americanos no Iraque na Segunda Guerra Mundial". "Nunca dê em cima de muçulmanas, é problema certo. E, de todo jeito, não levará a lugar algum. Prostitutas não andam nas ruas, ficam em instalações específicas."
A dramaturgia tenta viver um renascimento, com uma temporada fixa de peças no velho Teatro Nacional. "Mas ainda é muito difícil, tenho que fazer bicos", conta a atriz Naila Marouf, 28.
Cinemas inexistem, e é triste a visão da antiga sala Roxy, hoje uma loja decrépita de armarinhos na rua Rashid, no centro de Bagdá.
Além dos onipresentes cafés para fumar shisha (cachimbo de água), os bagdalis mais comedidos gostam de frequentar os clubes da cidade -e, com incrível frequência, jogar bingo a noite toda. O bar da União dos Cinematógrafos é dos mais disputados, e o calor do verão era amenizado por ventiladores com borrifadores de água.
O governo tentou fechar esses bares, e a disputa no da União dos Escritores foi o estopim da versão iraquiana da Primavera Árabe.
Já no Afeganistão, a balada é mais, digamos, familiar. Em Cabul, a outra capital que foi violentada pelos anos de conflito, álcool só é consumido de forma discreta, em casa ou em hotéis que atendem estrangeiros.
Os cinemas definham (leia texto abaixo). A verdadeira paixão nacional é soltar pipa, e isso não é invenção de mercado editorial para enredos lacrimosos de romances. Afegãos de todas as idades se concentram no morro de Nader Khan para duelos de pipas -com cerol.
A meca da produção de pipas fica a 20 minutos dali, no mercado de Shor. Lá está a loja mais famosa da cidade, de Pahlawan Karim, que tem desde pipas baratas de R$ 1,60 até elaborados modelos de até R$ 32.
"Em 40 anos vendendo pipas, só tivemos problemas mesmo na época do Taleban, quando éramos obrigados a vender panos e roupas aqui para disfarçar o negócio escondido. Hoje, é o que sobrou de diversão na cidade", conta Karim, 60.
Fisiculturismo, por algum motivo insondável, é outra mania nacional, com cartazes de homens ridiculamente musculosos por todos os cantos de Cabul.
"Eu acho que tem a ver com a ideia de ser forte contra tantos problemas, mas sinceramente é só um chute", diz o jornalista Ali Ahmad, 32, cujo irmão é dono de um ginásio.



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