São Paulo, domingo, 13 de setembro de 1998

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RÚSSIA PÓS-SOVIÉTICA
País tenta construir democracia em meio a herança autoritária e adere ao mercado com vestígios de estatismo
Crise explicita contrastes da transição russa

Otávio Dias de Oliveira
Ao ser questionado sobre a atual crise econômica do país, o estudante Alexander Ovtchenikov, 18 (à esquerda) diz: "Só senti (a crise) por causa do aumento do preço dos cigarros"


JAIME SPITZCOVSKY
enviado especial a Moscou

A Rússia, sustentam alguns historiadores, esculpiu o início e o fim deste século. A Revolução Russa de 1917 rompeu o período, enquanto a desintegração da União Soviética, em 1991, enterrou essa era.
O país mergulhou mais cedo no próximo centenário desafiado pela maior transição do planeta: construir uma democracia, a partir da herança do autoritarismo czarista e soviético, e organizar uma economia de mercado, depois de ondas de dirigismo estatal.
O maior país do mundo em território avançou no caminho das mudanças, incorporou talagadas de democracia e economia de mercado, mas ainda subsistem vestígios do passado. E a crise atual deixa mais expostas as debilidades de uma ex-superpotência militar, ainda dona do segundo maior arsenal nuclear do planeta.
Hoje, a Rússia é uma democracia. O multipartidarismo, a liberdade de expressão e de imprensa se enraizaram com velocidade surpreendente. Em 1985, os jornais soviéticos como o "Pravda" (verdade, em russo) deixavam as gráficas como mero instrumento de propaganda do regime.
Treze anos depois, as bancas de Moscou oferecem publicações para empresários, como o jornal "Kommersant Daily", para os ultranacionalistas e o semanário "Zaftra", para os neocomunistas. O "Izvestia" e o "Komsomolskaia Pravda", fundados nos tempos soviéticos, sobreviveram, ao contrário do "Pravda", e transformaram-se em jornais de prestígio. As moscovitas lêem em russo as revistas "Vogue" e "Cosmopolitan". A sofisticada "Domovoi" abastece o mercado de decoração, a "Playboy" seduz o público masculino.
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Consumo O contraste entre o cenário modorrento da imprensa soviética e o dinamismo do novo mercado editorial também emerge na comparação feita no mundo do consumo.
Nos tempos da URSS, o desabastecimento corroía o comércio. Os soviéticos ironizavam: "Vocês, no Ocidente, têm um problema: ganhar dinheiro. Aqui, temos dois: ganhar e conseguir gastar".
A inexistência de uma sociedade voltada ao consumo ditava padrões. Os soviéticos vestiam-se quase sempre da mesma maneira (óculos de armação grande de plástico, por exemplo). Os apartamentos tinham a mesma decoração -um tapete pendurado na parede ou um relógio de mesa eram símbolos de prosperidade.
Com o agravamento da crise econômica provocada pela falência do sistema soviético, as imagens de prateleiras vazias e filas diante de padarias e mercearias correram o mundo no final dos anos 80 e começo dos 90.
Atualmente, o mundo do consumo inundou a Rússia. Vinhos franceses, roupas italianas e produtos eletrônicos do Japão ocupam prateleiras das novas lojas. São estabelecimentos de russos ou de companhias estrangeiras.
Na escassez soviética, restaurantes abandonavam cardápios. Era mais prático o garçom relatar o pouco que havia disponível. Hoje, um guia de restaurantes de Moscou tem dezenas de páginas, com imensa variedade gastronômica e pouca democracia monetária. Raramente uma refeição sai por menos de 20 dólares em uma das cidades mais caras da Europa.
O mundo do perfume francês e da bolsa italiana, das lojas Versace e Lancôme, conquista território do austero mundo pregado, mas não vivido, pelos dirigentes comunistas. Esse novo universo, também marcado pela compra de mansões na Espanha e férias no sul da França, pertence aos chamados "novos russos", a ponta do iceberg russo.
Essa nova elite, formada em boa parte por ex-dirigentes comunistas transformados em arautos do capitalismo, fez sua fortuna no mercado financeiro, ao agarrar as oportunidades oferecidas pela gigantesca privatização de uma estrutura econômica que se concentrava nas mãos do Estado, ou ao aproveitar ligações com o crime organizado, uma indústria de extorsão, contrabando, tráfico de drogas e prostituição.
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Rápido demais A velocidade meteórica do esfarelamento do sistema soviético dificultou a organização de estruturas pós-URSS. O governo, ainda responsável pela maior fatia dos decadentes sistemas de saúde e educação no país, testemunhou uma dilapidação em seus cofres, fruto de corrupção, privatização acelerada e má administração.
O governo deve 77 bilhões de rublos (cerca de US$ 6,5 bilhões) a seus funcionários públicos. Essa massa corresponde a um terço de todos os rublos em circulação.
Baixos salários no setor público provocam, por exemplo, corrupção policial. As Forças Armadas combatem a crise econômica. Soldados sem receber pagamento vendem uniforme e armas, segundo a imprensa russa.
O incipiente capitalismo russo assume contornos de uma economia de escambo. Na falta de dinheiro, trocam-se mercadorias.
Uma indústria têxtil da cidade de Kostroma, relata a imprensa russa, entregou 6.000 pares de meia para a polícia, a fim de não pagar impostos às autoridades locais.
Nos últimos 15 anos, a Rússia experimentou abertura política, desabastecimento, hiperinflação, golpe de Estado fracassado, ataque de tanques contra Parlamento, crises políticas e econômicas. Um conjunto de turbulências que supersticiosos esperavam apenas para uma virada de milênio.



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