São Paulo, sábado, 13 de novembro de 2004

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PALESTINA ÓRFÃ

Sob salvas de tiros e entoando palavras de ordem, milhares invadem local da cerimônia e carregam o corpo do líder até a tumba

Multidão em transe enterra Arafat

Hazem Bader/France Presse
Aglomeração de pelo menos 30 mil pessoas participa do enterro do líder palestino Iasser Arafat, em Ramallah, na Cisjordânia


IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A RAMALLAH

O líder palestino Iasser Arafat foi enterrado ontem na Muqata, seu quartel-general em Ramallah (Cisjordânia), da mesma forma como viveu: caoticamente, com riscos de segurança enormes, com emoção. E aqueles a quem chamava de seu povo não fizeram por menos. Cancelaram oficialismos e praticamente enterraram o líder com as próprias mãos.
Dezenas de milhares de palestinos invadiram o local que deveria ser isolado para a cerimônia, impediram a realização de homenagens oficiais e até a saída de autoridades do helicóptero que trouxe o caixão. O presidente da Autoridade Nacional Palestina, morto anteontem aos 75 anos em Paris, foi colocado pela multidão e por guarda-costas em sua tumba, sob salvas de tiros e gritos emocionados. A imagem foi oposta à do funeral solene do Cairo. Em Ramallah, por um dia não houve críticas ao personalismo e ao centralismo de Arafat, que o acompanharam nos últimos anos.
Não é exagero dizer que mais de 30 mil pessoas foram à Muqata, numa população de pouco mais de 100 mil. Dado o tamanho da confusão que reinou, é quase inacreditável que apenas nove pessoas tenham sido feridas por tiros -fora as centenas que desmaiaram ou passaram mal. Não havia registro de mortes.
Tudo começou por volta das 9h locais (5h em Brasília). A polícia começou a fechar as ruas centrais que dão na Muqata. Última sexta-feira do mês sagrado do Ramadã, quando muitos descansam durante a manhã, o dia de sol forte estava tão calmo que não dava uma pista do que viria a seguir.
Nos arredores da Muqata, os jornalistas, que dominavam a cena nos últimos dias, acabaram virando o que devem ser: espectadores. Por volta das 10h, já havia engarrafamento de gente em volta do complexo -dentro do qual máquinas e operários ainda finalizavam a tumba de Arafat.
Vista de fora, a Muqata estava impecável, no que um conjunto de prédios semidestruídos possa parecer impecável. Os tubos de ferro enfiados em barris com cimento que impediam o pouso de helicópteros durante o confinamento de três anos de Arafat por Israel no QG viraram mastros para bandeiras. A tumba de Arafat, por volta das 12h, estava pronta.
Às 12h40, os primeiros sinais de confusão. Palestinos derrubaram a cerca de arame sobre o muro principal da Muqata e ali sentaram esperando o enterro. "Eu quero ver Abu Ammar (nome de guerra de Arafat)!", gritou Mohammed, aparentando 15 anos, antes de subir no muro. Um pouco mais, e a seqüência de eventos fora de controle começou.
O portão principal da Muqata foi forçado. As dezenas de policiais e soldados nada puderam fazer, e o complexo foi invadido. As ruínas foram tomadas, assim como o acesso ao topo do prédio principal. O clima era de arena.
A banda militar presente, com soldados uniformizados cozinhando em roupas escuras, começou a tocar. Acabou sendo abafada pelas fanfarras que passavam em torno da Muqata. Ao estilo de blocos carnavalescos, bandas de diversas facções palestinas passavam. Crianças com aspecto de escoteiros davam lugar a um grupo com cara de poucos amigos - homens de preto vestindo kaffiehs como se fossem gorros ninja e com fuzis à mão- que deliciou os caçadores de imagens. Integravam a Brigada dos Mártires de Al Aqsa, agora Iasser Arafat. Menos chamativo, um vendedor de balão com o rosto do líder palestino se desfez de toda sua mercadoria em apenas uma passada pela rua da Muqata -a 5 shekalim (pouco mais de US$ 1) a unidade.
Ao fundo, colunas de fumaça preta marcavam o céu, onde também foi possível ver dois rasantes de um pequeno avião não-tripulado espião israelense. Poucos notaram. Quatro das seis últimas árvores da Muqata, pinheiros em torno da tumba de Arafat, vergavam com o peso dos manifestantes que as escalaram. Prédios em volta foram totalmente tomados.
O gesto do governo francês de acolher Arafat em um hospital por 13 dias rendeu dividendos. Bandeiras da França se misturavam às palestinas, e cartazes agradecendo ao presidente Jacques Chirac apareciam lá e cá. Uma placa, mais crua, dizia: "Fuck Bush, Merci Chirac". Por volta das 14h, uma plataforma de madeira montada para que as TVs obtivessem boas imagens do enterro desabou, ferindo ao menos cinco.
Às 14h09, o início da apoteose. No horizonte, quatro helicópteros militares, três deles de transporte, apareceram. Gritando "Deus é grande" e "Arafat", a multidão viu os aparelhos se separarem e sumirem. Começaram os primeiros tiros para o ar. Sete minutos depois, dois deles se aproximaram da Muqata, levantando uma nuvem de poeira. Os gritos e os tiros se tornaram ensurdecedores.
Horas depois, o negociador palestino Saeb Erekat diria que o piloto egípcio perguntou naquele momento se não seria melhor pousar em outro lugar. Talvez fosse mais prudente, mas a reação popular seria imprevisível, disse Erekat.
Foi a hora dos moradores de Ramallah. O cordão de isolamento de soldados foi rompido e a multidão invadiu o pátio onde os dois helicópteros pousaram. Em segundos, uma massa gritando "Com nosso sangue e nossa alma nós vamos lhe redimir, Iasser Arafat" tomou conta de tudo, um pesadelo para a segurança. A banda militar desapareceu.
A cerca de 100 metros dali, no prédio principal da Muqata, os membros do Conselho Legislativo Palestino e do gabinete da Autoridade Nacional Palestina esperavam o caixão para cerimônia na sala onde Arafat despachava.
Presentes estavam membros do corpo diplomático, mais de 30 pessoas, entre eles o embaixador Bernardo de Azevedo Brito, que há 3 meses é o representante de Brasília em Ramallah. "A sala estava maravilhosamente preparada com flores. Mas de repente o povo irrompeu, e a cerimônia foi cancelada", disse à Folha.
Nos dois helicópteros, parte da cúpula palestina, como o novo chefe da Organização para a Libertação da Palestina, Mahmoud Abbas, o Abu Mazen, ficou presa e só pôde sair quase uma hora depois. De Suha Arafat, a mulher de Arafat malvista na sua terra, nem sinal -ficou no Cairo. O terceiro helicóptero de transporte, com o premiê Ahmed Korei, o Abu Ala, e o chanceler Nabil Shaath, pousou em outro local.
Havia pouco choro visível. Tampouco palavras de ódio, à exceção de uma ou outra acusação a Israel pela morte de Arafat. Será difícil tirar do imaginário popular a idéia de que ele foi envenenado. Mas o tom geral foi de afirmação nacionalista mesmo.
A saída do caixão, envolto em uma bandeira palestina depois arrancada, de um dos aparelhos demorou 25 minutos. Rapidamente, os guarda-costas da Muqata e muitos dos invasores carregaram o corpo de Arafat até um jipe militar, que saiu em disparada, quase atropelando dezenas. Em toda volta, pessoas caíram desacordadas pelo calor e a confusão. A reportagem contou pelo menos 30 atendimentos por pessoal do Crescente Vermelho, que tinha apenas uma ambulância no local -que aumentaram para menos sete depois que a confusão piorou. A Folha viu um soldado palestino baleado no abdômen, e agências internacionais falavam num total de 9 feridos a bala.
Houve muitos tiros ao ar, em homenagem a Arafat e para afastar a multidão do caixão ou dos clérigos muçulmanos que leram versos do Corão quando o corpo foi à tumba. Boa parte foi de festim, distribuído pelos militares palestinos para evitar acidentes.
O jipe foi à entrada dos escritórios da Muqata, mas, quando ficou claro que não haveria mais velório, disparou novamente, entre uma onda de braços e mãos fazendo o "V" da vitória característico de Arafat. Eram 14h53. Em poucos minutos, por volta das 15h, o caixão foi descido na tumba. "Eu achava que seria mais bem organizado", diria depois Erekat. Ele e outros políticos fizeram uma homenagem, com coroas de flores de gosto duvidoso, ao pé do túmulo às 16h.
Enquanto isso, a multidão se comportou como num show de rock, com a diferença que os acordes eram dados por fuzis de assalto Kalashnikov e algumas metralhadoras. Empurrões, desmaios, pés fora do chão, e também gente sentada tranqüilamente no chão ligando de celular para casa.
Às 15h45, os dois helicópteros levantaram vôo e mais uma nuvem de detritos, que filtraram em vermelho a luz do sol que começava a baixar. O fluxo de pessoas começou a refluir -o sol baixo anunciava o fim do jejum nas horas de luz do Ramadã.
Mais uma hora e vários tiros depois, e Ramallah lentamente voltava ao normal. As pessoas foram para casa comer; de 50 a 100 ficaram na Muqata, onde a tumba era cercada por ineficaz cordão de isolamento. Prometiam passar a noite. Não se sabe se os portões da Muqata ficarão sempre abertos para a visitação ao túmulo.
Em volta do complexo tornado memorial, cartazes e muita sujeira. No começo da noite havia muitas pessoas nas ruas, até porque o comércio seguia fechado devido ao luto oficial. Houve relato de explosão, não confirmada. Mas a maioria dos palestinos, tendo enterrado seu líder por 40 anos com pompas emocionais raramente vistas em funerais de líderes políticos, preferiu seguir o caminho de casa, da vida cotidiana.


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