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DEPOIMENTO
O Haiti já estava de joelhos; agora, está prostrado
OMAR RIBEIRO THOMAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA,
EM PORTO PRÍNCIPE (HAITI)
No dia 12 de janeiro de 2010,
o mundo ruiu em Porto Príncipe. Um mundo já frágil e parcialmente em ruínas foi-se
abaixo. O Haiti já estava de joelhos. Agora, com a destruição
de sua capital, está prostrado.
Os principais edifícios desabaram, entre eles o palácio nacional, vários ministérios e a
catedral; no segundo dia da volta às aulas, jovens estudantes
de escolas e universidades procuravam seus amigos entre feridos e mortos nas calçadas e
choravam aqueles soterrados.
As operações de resgate são, até
o momento, uma promessa, e é
evidente que as forças internacionais da ONU não estavam
preparadas para lidar com uma
calamidade desta natureza.
Sem Estado e diante da inoperância da ONU, os haitianos estão entregues à própria sorte.
Após o terremoto, as ruas da
capital e as vias que a conectam
com os subúrbios e com Pétionville, ficaram absolutamente obstruídas. Carros foram soterrados por muros e
prédios; também foram abandonados nas vias estreitas de
uma cidade que já possui um
trânsito caótico.
Na hipótese da
existência de ambulâncias ou
veículos de resgate, não teriam
como passar. Mortos e feridos
se aglomeram nas calçadas, indivíduos correm horas e horas
para chegar em sua casa e ver
como se encontram os seus, outros parecem andar e correr
sem destino.
Diante da falta absoluta de ação de qualquer instância para atender uma cidade
subitamente transformada
num campo de refugiados, os
saques são inevitáveis, e escutamos tiroteios em distintas
partes da cidade.
A comoção inicial, traduzida
em cânticos e em clamores para "Jesu" e "Bon Dieu", cede
pouco a pouco a uma sensação
de frustração sem limites, de
raiva. Historicamente, o mundo insistiu em ignorar o Haiti e
sua grandeza.
Ao embargo político e intelectual secular -como definir de outra forma o ostracismo ao qual foi relegado o
Haiti após sua vitoriosa revolução que culminou com sua independência em 1804?- sucederam-se intervenções e ocupações que sempre procuraram
negar aos haitianos o sentimento do orgulho dos seus feitos; e, por fim, o golpe de misericórdia, a imposição de uma
agenda ditada pela Guerra Fria,
que, entre os anos 1950 e 1980
destruiu o Estado haitiano (ao
contrário do que pensam alguns, o Haiti possuía um Estado, nem melhor nem pior do
que os seus congêneres latino-americanos e caribenhos), fragilizou suas instituições, criminalizou os movimentos sociais
e arrebentou seu sistema econômico.
Não foi a interferência
americana que destruiu o plantio de milho e interrompeu as
conexões existentes entre o
camponês, os fornos e os consumidores? Ou outra intervenção que promoveu a eliminação
do porco crioulo, base econômica de famílias? Ou o embargo internacional que promoveu
o golpe final nas reservas florestais impondo o uso indiscriminado de carvão vegetal?
Diante da fúria da natureza
não cabe outro sentimento que
o de uma frustração que deita
raízes numa história profunda
e que subitamente pode ganhar
cor: o mundo dos brancos nos
destruiu; o mundo dos brancos
diz que quer fazer alguma coisa,
mas o que faz, além de nutrir
seus telejornais com fotos miseráveis que só fazem alimentar a satisfação autocentrada
dos países ditos ocidentais?
Não são poucos os agentes
das organizações internacionais que anunciam que a "comunidade internacional" estaria cansada do Haiti. Após escutar os haitianos ao longo de
anos, de tentar entender o sentido de sua história, digo que
são os haitianos que estão fartos das promessas daqueles que
dizem representar a "comunidade internacional". Afinal, por
que estão aqui? Após seis anos
de ocupação, os hospitais e as
escolas ruíram. Depois da tragédia de Gonaives -quando essa cidade foi soterrada na passagem de um furacão, em
2004-, não teríamos de estar
minimamente preparados para
a gestão de uma calamidade?
Não: a gestão foi entregue aos
haitianos e haitianas, e, por que
não dizer, ao "Bon Dieu".
OMAR RIBEIRO THOMAZ, 44, é antropólogo e
professor da Unicamp
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