São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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AMÉRICA LATINA

Em entrevista de cem horas, líder cubano afirma que país deve corrigir erros para preservar processo da revolução

Cuba tem de mudar para sobreviver, diz Fidel

Adalberto Roque-1.mai.2006/France Presse
Fidel discursa durante festa do Dia do Trabalho em Havana


IGNACIO RAMONET
DA IPS, EM HAVANA

Cuba busca uma transformação para sobreviver. Quem afirma é Fidel Castro. "Os ianques não podem destruir o processo revolucionário, pois nossa população aprendeu a portar armas. Mas este país pode se autodestruir se não formos capazes de corrigir nossos erros", diz o ditador, no poder desde 1959.
O alerta foi feito durante uma série de cem horas de entrevista a Ignacio Ramonet, editor do "Le Monde Diplomatique", cujo resultado é o livro "Fidel Castro Autobiografia a Dos Voces". Nas 569 páginas, o líder cubano, que tem quase 80 anos, também fala de sua sucessão e afirma não acreditar que Cuba seguirá o caminho da União Soviética, embora reconheça as ameaças que enfrenta.
A primeira edição do livro de Ramonet em espanhol esgotou em 15 dias, e o lançamento em mais nove línguas está previsto para breve. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

 

Pergunta - Se, por alguma razão, o senhor desaparecer, seu irmão Raúl será seu sucessor indiscutível?
Fidel Castro-
Se algo me acontecer amanhã, sem dúvida alguma a Assembléia Nacional se reunirá e o elegerá. Mas Raúl já está me alcançando em anos, o que significa que o problema diz respeito a uma geração. Temos tido sorte na medida em que os indivíduos que fizeram a revolução abrangeram três gerações. O mesmo se deu com aqueles que nos antecederam, os velhos militantes e líderes do Partido Socialista Popular, para os quais nós éramos a nova geração. Então houve aqueles que vieram imediatamente depois de nós, que fizeram parte da campanha de alfabetização, da luta contra o banditismo, contra o bloqueio e contra o terrorismo, da luta em Girón, da crise dos "mísseis" de 1962, das missões internacionalistas... Muitas pessoas de mérito tremendo. E muitos cientistas, técnicos, heróis do trabalho, intelectuais, professores. O país tem grande abundância de talento. Acrescente-se a isso a nova geração, estudantes universitários e trabalhadores sociais, com os quais há relações estreitas.

Pergunta - O senhor está dizendo que pensa que seu verdadeiro substituto, em lugar de ser uma pessoa, Raúl, será uma geração?
Fidel -
Sim. Tenho confiança, sempre disse isso. Mas estamos conscientes de que há muitas ameaças a um processo revolucionário. Existem erros de natureza subjetiva. Houve erros, e somos responsáveis por não termos descoberto determinados erros e tendências. Hoje alguns desses erros já foram superados, outros ainda estamos combatendo. Tenho muita esperança, pois vejo que aqueles aos quais chamo a quarta geração terão três ou quatro vezes os conhecimentos que nós, da primeira, tínhamos.
Muito mais pessoas virão ver o desenvolvimento social deste país do que suas praias. Porque nosso país está fazendo coisas. É um país pequeno capaz de fornecer o pessoal de que a ONU precisa para a campanha proposta pelo secretário-geral para erradicar a Aids na África. A Europa e os EUA juntos não seriam capazes de fornecer mil médicos que teriam ido onde nossos médicos foram. Isso propicia certa satisfação a este país, que já sofreu mais de 40 anos de embargo e dez anos do "período especial". Ele criou capital humano, e capital humano não é criado pelo egoísmo, pelo estímulo ao individualismo.

Pergunta - O senhor acha que a sucessão ocorrerá sem problemas?
Fidel -
Não haverá problema nenhum de imediato nem mais tarde. Porque a revolução não se baseia na presença de um grande líder nem no culto a uma personalidade. A revolução se fundamenta em princípios. E as idéias que defendemos são, há algum tempo, as idéias de todo o povo.

Pergunta - Vejo que o senhor não está preocupado com o futuro da Revolução Cubana. Mas, nos últimos anos, o senhor assistiu à queda da União Soviética, da Iugoslávia, à revolução albanesa, à situação lamentável da Coréia do Norte, ao mergulho do Camboja no horror e à China, onde a revolução assumiu uma aparência muito diferente. Tudo isso não o angustia?
Fidel
- Acho que a experiência do primeiro Estado socialista, a URSS, um Estado que deveria haver se corrigido, não se destruído, foi muito amarga. Não creia por um segundo que não pensamos com freqüência sobre esse fenômeno, como uma das maiores potências do planeta, que tinha sido capaz de contrabalançar a força da outra superpotência, desabou da maneira que desabou. Houve aqueles que acreditaram que podiam construir o socialismo com métodos capitalistas. Esse foi um dos grandes erros históricos. Não quero teorizar, mas eu poderia oferecer uma infinidade de exemplos de erros daqueles que se consideravam teóricos, saturados até o âmago dos ossos nos livros de Marx, Engels, Lênin e os outros.
Um dos nossos maiores erros no início, e ao longo da revolução, foi acreditar que havia alguém que sabia como o socialismo deveria ser construído. Hoje temos idéias muito claras sobre como o socialismo deve ser construído, mas precisamos de muitas idéias claras sobre como conservá-lo.
A China é outra questão -uma grande potência que está emergindo, uma grande potência que a história não destruiu, que manteve certos princípios fundamentais, que buscou a unidade, que não fragmentou suas forças.
Então posso lhe dizer que, quando potências enormes como a URSS e os regimes que você mencionou e tantas coisas se destruíram, este país bloqueado compartilha, ajuda e forma milhares de profissionais do Terceiro Mundo em universidades sem lhes cobrar um centavo, e faz progressos em todos os campos.

Pergunta - Não pode o processo revolucionário em Cuba desabar também?
Fidel -
Será que as revoluções estão fadadas a cair ou podem os homens fazer com que desabem? Ou impedir? Eu já me fiz essa pergunta muitas vezes. E tome nota do que digo: os ianques não podem destruir este processo revolucionário, pois temos uma população que aprendeu a portar armas; uma população que, apesar de nossos erros, tem um nível tão alto de cultura, conhecimento e consciência que jamais permitirá que este país volte a ser colônia dos EUA. Entretanto este país pode se autodestruir. Esta revolução pode se autodestruir. Nós podemos destruí-la, e seria nossa culpa -se não formos capazes de corrigir nossos erros, se não conseguirmos pôr fim a muitos maus hábitos, incluindo o roubo.
Por esta razão estamos agindo, estamos caminhando em direção a uma transformação total de nossa sociedade. Precisamos retornar ao processo de transformação, porque passamos por tempos muito difíceis, e foram criadas desigualdades e injustiças. E precisamos mudar isso, sem cometer o mais mínimo abuso.


Tradução de Clara Allain


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