São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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O dia "D" de Evo Morales

No dia em que assinou o decreto nacionalizando os hidrocarbonetos bolivianos, Evo Morales acordou às 4h e viajou pelo país

MERCEDES IBAIBARRIAGA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LA PAZ

O presidente da Bolívia continua a manter hábitos da época em que era líder sindical. Não se acostumou à residência oficial e prefere dormir, duas ou três vezes por semana, na pequena casa de 36 m2 que alugou em La Paz quando era deputado. Suas jornadas de trabalho duram 20 horas.
Este é o relato de um dia completo com o homem que governa um dos países mais pobres da América do Sul. A data? 27 de abril, dia em que concluiu o decreto que nacionalizaria os hidrocarbonetos bolivianos.

 

As luzes do apartamento se acendem às 4h30 da madrugada. Evo Morales abre os olhos num quarto de 6 m2 em que está cercado por um televisor, um armário, um computador sobre uma mesa, uma cadeira e vários cartazes do MAS (Movimento ao Socialismo), partido com o qual governa a Bolívia há 107 dias.
O presidente acorda no mesmo apartamento que alugou, juntamente com vários companheiros, quando era dirigente sindical. Aqui ele passou seu pior momento político, quando foi expulso do Parlamento, aqui planejou sua campanha e aqui, no dia de sua posse, recebeu a visita do então presidente chileno Ricardo Lagos.
Fazendo um esforço para dissimular sua surpresa, Lagos subiu a gasta escadaria de madeira do edifício, contemplou as paredes descascadas. Morales o fez atravessar a cozinha até a mesa da sala, onde os dois se reuniram. Horas antes, o enviado especial dos EUA tinha congratulado Morales por sua chegada ao poder, na mesma sala onde o presidente agora nos recebe, depois de tomar banho e arrumar sua cama.
Será um dia crucial. Morales pretende dar os últimos retoques no decreto de nacionalização dos hidrocarbonetos, que desde 1º de maio angustia as empresas petrolíferas instaladas no país. Morales apenas comenta que tem uma reunião "muito importante".
Noite fechada em La Paz. A equipe de segurança do presidente luta contra o sono e as olheiras. "El jefe" é exaustivo. Sua agenda começa às 5h da manhã, e não se sabe quando termina. Morales trabalha 20 horas por dia; há dias em que nem sequer dorme.
"A geladeira está meio vazia", observa, antes de olhar para o relógio. "Vamos, vamos chegar tarde ao Palácio!" É difícil explicar o contraste de abandonar o prédio humilde e então receber a saudação marcial do capitão da Força Naval Alvarez Monasterios, o ajudante-de-campo do presidente, ao abrir a porta da BMW oficial.
Sentado no banco de couro do carro, Morales admite que não pisou na residência oficial no dia em que recebeu a faixa presidencial. Nem nos seguintes. Depois de fazer o juramento à Constituição, ele voltou ao apartamento. "Com o movimento todo, não pude lhe dar os parabéns. Eu o abracei quando ele chegou em casa, na cozinha", conta Hugo, seu companheiro de apartamento.

Medo
A BMW segue pelas ruas desertas de La Paz. "Ao final, não me restou outra alternativa senão me instalar na residência oficial, embora eu goste de dormir na minha casinha uma ou duas vezes por semana", diz Morales. "No início me parecia grande demais, asfixiante, eu me sentia preso -tinha medo, com tanta segurança e tantos militares à minha volta. Pedi ao vice-presidente, ao presidente do Congresso e ao da Câmara que viessem morar comigo. Apenas Santos Ramírez [antigo senador do MAS e presidente da Câmara de Deputados] aceitou."
As portas do palácio se abrem. Com as espadas ao alto, o batalhão dos Colorados faz continência -são 20 soldados com casacas vermelhas, diante do estadista que veste jaqueta de couro. "Bom dia, senhor presidente! Por parte da guarda, nenhuma novidade!". Morales se dirige com pressa até o elevador, uma antiga preciosidade inglesa de ferro batido, e sobe até o terceiro andar. Entramos numa ante-sala.
Às 5h15, o presidente atende à primeira ligação em seu celular: "Sim, irmão, para a questão da moradia fale com Bolaños". No Salão Azul, ao lado, vão se reunir os responsáveis pelo tremendo susto que será dado à Petrobras, à hispano-argentina Repsol, à francesa Total e às nove outras multinacionais que exportam o gás e o petróleo da Bolívia no 1º de Maio.
Enquanto eles chegam, Morales fala da partida de "futbito" que ganhou na noite anterior. O time do presidente nocauteou um time de jornalistas. "Por nada menos do que 9 a 3!", destaca Morales. "Nos dois primeiros gols, eu dei um passe. Foram gols lindos. Os dois seguintes quem marcou fui eu." Insinuei que o deixaram ganhar por ser o presidente. Morales nega: "Álvaro [García Linea, o vice-presidente] me disse a mesma coisa. Falou que eu fiz os gols por decreto! Saí cheio de equimoses. Isso o convenceu."
Atrás da porta, o vice-presidente, o ministro dos Hidrocarbonetos e o ministro da Fazenda se cumprimentam. Morales se desculpa e entra na reunião. Um camareiro traz uma bandeja com papaia, chá preto, chá de folha de coca e café. Somos autorizados a entrar e fotografar. Quando a câmera dispara, o ministro dos Hidrocarbonetos, Andrés Solíz Rada, tira alguns documentos de sua pasta. O "decretazo" se aproxima.

Sapatos
Saímos. Jacinto Ramos, o camareiro, distribui café pelos salões, como vem fazendo desde os tempos do ditador Hugo Bánzer. Nessa época (1971-1978), teria sido impensável ver no palácio uma indígena com sua "pollera" (saia tradicional), suas sandálias e seu chapéu de palha.
Aparece um homem com boné na cabeça e pergunta se queremos que engraxe nossos sapatos. Aqui? "É claro, sou o engraxate do palácio." Há três anos ele pediu autorização à polícia militar para polir os calçados presidenciais. Como essa idéia nunca tinha ocorrido a ninguém, ele obteve a autorização exclusiva. O homem mostra ser loquaz: "O presidente que mais lustrava os sapatos era Carlos Mesa [outubro de 2003 a junho de 2005], e depois Eduardo Rodríguez [presidente interino na transição até as eleições de dezembro, vencidas por Morales], e quem menos os engraxa é Morales". O engraxate é implacável: "Passei um ano lustrando os sapatos de Mesa de graça. Depois me queixei na secretaria, e ele passou a me pagar 20 pesos (R$ 6) por mês. Rodríguez me dava entre 10 e 5 pesos. Morales só me chamou duas vezes, mas me deu 10 pesos cada vez".
O presidente entra e sai dos salões em ritmo frenético. Reunião com o alto comando policial. Com a Associação Nacional de Suboficiais. Com os bispos da Igreja Metodista, que lhe trazem uma torta caseira de limão e um cachecol de lã tecido à mão e, de quebra, o condecoram.

Almoço
Às 13h nos sentamos para almoçar. Na sala de jantar, juntamente com o vice-presidente, Morales toma uma sopa e um suco de cevada. O segundo prato inclui croquetes, carne e quinua, um cereal do altiplano. Para a sobremesa, frutas. Comemos em meia hora. É preciso partir com pressa para o aeroporto militar.
Começa a experiência automobilística mais assustadora de nossas vidas. Os guarda-costas nos separam. O fotógrafo vai no primeiro veículo de tração nas quatro rodas. Morales, no automóvel presidencial. Quem escreve estas linhas, no terceiro veículo. Os motoristas fazem curvas em ziguezague, em alta velocidade. Se o carro de Morales se desloca bruscamente para a esquerda, o primeiro e o terceiro viram à direita. As pessoas se afastam para dar passagem. Pelas janelas dos veículos de proteção se vêem as pistolas Browning dos seguranças, destravadas. Seis pistolas, quatro submetralhadoras M-10 e duas escopetas Mosberg compõem o arsenal do veículo. "Combinamos táticas de segurança israelenses, mexicanas e americanas para evitar emboscadas, atentados com explosivos e franco-atiradores", explica mais tarde o tenente-coronel Jorge Sarabia, que neste momento dirige a operação, por rádio, da BMW presidencial.


Tradução de Clara Allain


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