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O dia "D" de Evo Morales
No dia em que assinou o decreto nacionalizando os hidrocarbonetos bolivianos, Evo Morales acordou às 4h e viajou pelo país
MERCEDES IBAIBARRIAGA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LA PAZ
O presidente da Bolívia continua a manter hábitos da época em
que era líder sindical. Não se acostumou à residência oficial e prefere dormir, duas ou três vezes por
semana, na pequena casa de 36 m2
que alugou em La Paz quando era
deputado. Suas jornadas de trabalho duram 20 horas.
Este é o relato de um dia completo com o homem que governa
um dos países mais pobres da
América do Sul. A data? 27 de
abril, dia em que concluiu o decreto que nacionalizaria os hidrocarbonetos bolivianos.
As luzes do apartamento se
acendem às 4h30 da madrugada.
Evo Morales abre os olhos num
quarto de 6 m2 em que está cercado por um televisor, um armário,
um computador sobre uma mesa,
uma cadeira e vários cartazes do
MAS (Movimento ao Socialismo), partido com o qual governa
a Bolívia há 107 dias.
O presidente acorda no mesmo
apartamento que alugou, juntamente com vários companheiros,
quando era dirigente sindical.
Aqui ele passou seu pior momento político, quando foi expulso do
Parlamento, aqui planejou sua
campanha e aqui, no dia de sua
posse, recebeu a visita do então
presidente chileno Ricardo Lagos.
Fazendo um esforço para dissimular sua surpresa, Lagos subiu a
gasta escadaria de madeira do
edifício, contemplou as paredes
descascadas. Morales o fez atravessar a cozinha até a mesa da sala, onde os dois se reuniram. Horas antes, o enviado especial dos
EUA tinha congratulado Morales
por sua chegada ao poder, na
mesma sala onde o presidente
agora nos recebe, depois de tomar
banho e arrumar sua cama.
Será um dia crucial. Morales
pretende dar os últimos retoques
no decreto de nacionalização dos
hidrocarbonetos, que desde 1º de
maio angustia as empresas petrolíferas instaladas no país. Morales
apenas comenta que tem uma
reunião "muito importante".
Noite fechada em La Paz. A
equipe de segurança do presidente luta contra o sono e as olheiras.
"El jefe" é exaustivo. Sua agenda
começa às 5h da manhã, e não se
sabe quando termina. Morales
trabalha 20 horas por dia; há dias
em que nem sequer dorme.
"A geladeira está meio vazia",
observa, antes de olhar para o relógio. "Vamos, vamos chegar tarde ao Palácio!" É difícil explicar o
contraste de abandonar o prédio
humilde e então receber a saudação marcial do capitão da Força
Naval Alvarez Monasterios, o ajudante-de-campo do presidente,
ao abrir a porta da BMW oficial.
Sentado no banco de couro do
carro, Morales admite que não pisou na residência oficial no dia em
que recebeu a faixa presidencial.
Nem nos seguintes. Depois de fazer o juramento à Constituição,
ele voltou ao apartamento. "Com
o movimento todo, não pude lhe
dar os parabéns. Eu o abracei
quando ele chegou em casa, na
cozinha", conta Hugo, seu companheiro de apartamento.
Medo
A BMW segue pelas ruas desertas de La Paz. "Ao final, não me
restou outra alternativa senão me
instalar na residência oficial, embora eu goste de dormir na minha
casinha uma ou duas vezes por semana", diz Morales. "No início
me parecia grande demais, asfixiante, eu me sentia preso -tinha
medo, com tanta segurança e tantos militares à minha volta. Pedi
ao vice-presidente, ao presidente
do Congresso e ao da Câmara que
viessem morar comigo. Apenas
Santos Ramírez [antigo senador
do MAS e presidente da Câmara
de Deputados] aceitou."
As portas do palácio se abrem.
Com as espadas ao alto, o batalhão dos Colorados faz continência -são 20 soldados com casacas vermelhas, diante do estadista
que veste jaqueta de couro. "Bom
dia, senhor presidente! Por parte
da guarda, nenhuma novidade!".
Morales se dirige com pressa até o
elevador, uma antiga preciosidade inglesa de ferro batido, e sobe
até o terceiro andar. Entramos
numa ante-sala.
Às 5h15, o presidente atende à
primeira ligação em seu celular:
"Sim, irmão, para a questão da
moradia fale com Bolaños". No
Salão Azul, ao lado, vão se reunir
os responsáveis pelo tremendo
susto que será dado à Petrobras, à
hispano-argentina Repsol, à francesa Total e às nove outras multinacionais que exportam o gás e o
petróleo da Bolívia no 1º de Maio.
Enquanto eles chegam, Morales
fala da partida de "futbito" que
ganhou na noite anterior. O time
do presidente nocauteou um time
de jornalistas. "Por nada menos
do que 9 a 3!", destaca Morales.
"Nos dois primeiros gols, eu dei
um passe. Foram gols lindos. Os
dois seguintes quem marcou fui
eu." Insinuei que o deixaram ganhar por ser o presidente. Morales nega: "Álvaro [García Linea, o
vice-presidente] me disse a mesma coisa. Falou que eu fiz os gols
por decreto! Saí cheio de equimoses. Isso o convenceu."
Atrás da porta, o vice-presidente, o ministro dos Hidrocarbonetos e o ministro da Fazenda se
cumprimentam. Morales se desculpa e entra na reunião. Um camareiro traz uma bandeja com
papaia, chá preto, chá de folha de
coca e café. Somos autorizados a
entrar e fotografar. Quando a câmera dispara, o ministro dos Hidrocarbonetos, Andrés Solíz Rada, tira alguns documentos de sua
pasta. O "decretazo" se aproxima.
Sapatos
Saímos. Jacinto Ramos, o camareiro, distribui café pelos salões,
como vem fazendo desde os tempos do ditador Hugo Bánzer. Nessa época (1971-1978), teria sido
impensável ver no palácio uma
indígena com sua "pollera" (saia
tradicional), suas sandálias e seu
chapéu de palha.
Aparece um homem com boné
na cabeça e pergunta se queremos
que engraxe nossos sapatos.
Aqui? "É claro, sou o engraxate do
palácio." Há três anos ele pediu
autorização à polícia militar para
polir os calçados presidenciais.
Como essa idéia nunca tinha
ocorrido a ninguém, ele obteve a
autorização exclusiva. O homem
mostra ser loquaz: "O presidente
que mais lustrava os sapatos era
Carlos Mesa [outubro de 2003 a
junho de 2005], e depois Eduardo
Rodríguez [presidente interino na
transição até as eleições de dezembro, vencidas por Morales], e
quem menos os engraxa é Morales". O engraxate é implacável:
"Passei um ano lustrando os sapatos de Mesa de graça. Depois
me queixei na secretaria, e ele passou a me pagar 20 pesos (R$ 6)
por mês. Rodríguez me dava entre 10 e 5 pesos. Morales só me
chamou duas vezes, mas me deu
10 pesos cada vez".
O presidente entra e sai dos salões em ritmo frenético. Reunião
com o alto comando policial.
Com a Associação Nacional de
Suboficiais. Com os bispos da
Igreja Metodista, que lhe trazem
uma torta caseira de limão e um
cachecol de lã tecido à mão e, de
quebra, o condecoram.
Almoço
Às 13h nos sentamos para almoçar. Na sala de jantar, juntamente
com o vice-presidente, Morales
toma uma sopa e um suco de cevada. O segundo prato inclui croquetes, carne e quinua, um cereal
do altiplano. Para a sobremesa,
frutas. Comemos em meia hora. É
preciso partir com pressa para o
aeroporto militar.
Começa a experiência automobilística mais assustadora de nossas vidas. Os guarda-costas nos
separam. O fotógrafo vai no primeiro veículo de tração nas quatro rodas. Morales, no automóvel
presidencial. Quem escreve estas
linhas, no terceiro veículo. Os motoristas fazem curvas em ziguezague, em alta velocidade. Se o carro
de Morales se desloca bruscamente para a esquerda, o primeiro e o terceiro viram à direita. As
pessoas se afastam para dar passagem. Pelas janelas dos veículos
de proteção se vêem as pistolas
Browning dos seguranças, destravadas. Seis pistolas, quatro submetralhadoras M-10 e duas escopetas Mosberg compõem o arsenal do veículo. "Combinamos táticas de segurança israelenses,
mexicanas e americanas para evitar emboscadas, atentados com
explosivos e franco-atiradores",
explica mais tarde o tenente-coronel Jorge Sarabia, que neste momento dirige a operação, por rádio, da BMW presidencial.
Tradução de Clara Allain
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