São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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ARTIGO

Moscou, Pequim e o liberalismo

ROBERT KAGAN

Desde que surgiu o liberalismo, no século 18, seu inevitável conflito com a autocracia ajudou a dar forma à política internacional. Aquilo que James Madison classificava como "a grande luta entre a liberdade e o despotismo em nossa era" dominou boa parte do século 19 e quase todo o século seguinte, quando as potências liberais se alinharam contra diversas formas de autocracia em guerras, tanto frias quanto quentes.
Muitos acreditavam que esse conflito tivesse se encerrado depois de 1989, com o colapso do comunismo, o último dos candidatos à posição de autocracia "legítima", e que ele teria sido suplantado como principal fonte de disputas mundiais por antigas antipatias religiosas, étnicas e culturais, opinião aparentemente confirmada pelos ataques de 11 de setembro de 2001 e pela ascensão do islamismo radical.
Mas a presente era talvez esteja tomando a forma, entre outras coisas, de um conflito renovado entre o liberalismo e a autocracia. Os principais protagonistas, no campo da autocracia, não serão as pífias ditaduras do Oriente Médio que a doutrina Bush teoricamente toma por alvo, mas sim as duas grandes potências autocráticas, China e Rússia, que apresentam um velho desafio que não foi computado na formulação do novo paradigma de "guerra contra o terrorismo".
Se isso parece surpreendente é porque nenhuma das duas potências tomou o rumo que a maioria dos observadores previa. No final dos anos 90 a trajetória internacional e política da Rússia parecia estar encaminhada, grosso modo, em direção liberal e ocidental. Ainda em 2002, presumia-se que a China também estaria a caminho de uma maior liberalização política interna e de uma maior integração com o mundo liberal.
Hoje, essas suposições parecem questionáveis até mesmo aos seus autores. A idéia de uma iminente democratização da Rússia desapareceu, e tampouco se fala em interação.
A China continua a se integrar à ordem econômica mundial, mas poucos observadores imaginam que a liberalização política do país seja inevitável. A economia chinesa está florescendo enquanto a liderança do país mantém firmemente o monopólio do poder por partido único, de modo que agora as pessoas falam de um "modelo chinês" sob o qual a autocracia política e o crescimento econômico podem caminhar de mãos dadas.
Os líderes da Rússia também apreciam esse modelo, ainda que, no caso deles, o crescimento econômico dependa de reservas aparentemente ilimitadas de petróleo e gás natural.
Até agora, a estratégia do Ocidente liberal vem sendo a de tentar integrar essas duas potências à ordem liberal internacional, mas essa estratégia depende de uma expectativa de transformação gradual, mas firme, de ambas em sociedades liberais.
Se, em vez disso, China e Rússia optarem por se manter como firmes pilares da autocracia, perdurando e talvez até prosperando, não se poderá esperar que venham a adotar a visão ocidental de uma inexorável evolução da humanidade em direção à democracia e ao fim do domínio autocrático. Em lugar disso, podemos esperar que façam o que autocracias sempre fizeram: resistam aos avanços do liberalismo, no interesse de sua própria sobrevivência em longo prazo.

Defesa de interesses
De modos discretos, mas reveladores, é isso que Rússia e China vêm fazendo em lugares como o Sudão e o Irã, onde fazem causa comum para bloquear os esforços do Ocidente liberal para impor sanções.
Essas ações podem ser justificadas com base na defesa de interesses materiais estreitos: a China precisa do petróleo sudanês e iraniano; a Rússia quer manter as centenas de milhões de dólares que fatura com a venda de armas e reatores nucleares.
Mas em suas decisões há mais em jogo do que o autointeresse limitado. Defender esses governos contra as pressões do Ocidente liberal reflete seus interesses fundamentais como autocracias.
Rússia e China tampouco recebem com agrado os esforços do Ocidente liberal para promover o liberalismo político em todo o planeta, especialmente em regiões que consideram estrategicamente importantes. Suas reações às "revoluções coloridas" na Ucrânia, Geórgia e Quirguistão foram hostis e suspicazes.
Os liberais ocidentais vêem as perturbações políticas nesses países como uma evolução natural, ainda que irregular, em direção ao liberalismo e à democracia. Mas os russos e os chineses não consideram que essas ocorrências tenham nada de natural, e na verdade as classificam como golpes promovidos pelo Ocidente com o objetivo de ampliar a influência ocidental em porções estrategicamente vitais do mundo.

Ironia
Será que uma autocracia sacrifica seus interesses ao aderir aos esforços do Ocidente para condenar uma segunda autocracia?
Uma ironia que os europeus deveriam apreciar é o fato de que China e Rússia defendem fielmente o princípio cardeal da ordem liberal internacional -a insistência em que todas as ações internacionais sejam autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU- a fim de solapar outro dos grandes objetivos do liberalismo internacional, ou seja, promover o avanço dos direitos humanos em todo o mundo, às vezes em oposição a governos que os reprimem.
Assim, enquanto europeus e norte-americanos vêm se esforçando há duas décadas para estabelecer novas "normas" liberais a fim de permitir intervenções em lugares como Kosovo, Ruanda e o Sudão, Rússia e China têm empregado seu poder de veto para impedir uma "evolução" das normas nesse sentido. É provável que novos conflitos desse tipo surjam no futuro.
O mundo é um lugar complicado e não vai se dividir em uma simples disputa maniqueísta entre o liberalismo e a autocracia. Rússia e China não são aliadas naturais. Ambas precisam de acesso aos mercados do Ocidente liberal. E ambas compartilham certos interesses com as potências liberais do Ocidente.
Mas, como autocracias, têm importantes interesses em comum, tanto uma com a outra quanto com outras autocracias. Todas estão sob cerco em uma era na qual o liberalismo parece estar se expandindo.
Ninguém deveria se surpreender caso, em resposta, surja uma liga informal de ditadores, sustentada e protegida por Moscou e Pequim da melhor maneira que puderem. A questão será determinar o que os Estados Unidos e a Europa decidirão fazer em resposta.


Robert Kagan é pesquisador-associado sênior da Carnegie Endowment for International Peace e pesquisador transatlântico do German Marshall Fund

Tradução de Paulo Migliacci


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