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Índios se enfrentam em reduto evista
Na favela de Plán 3000, gueto indígena na periferia de Santa Cruz, "cambas" acossam os "collas" aliados de Morales
Oposição no departamento mais rico da Bolívia paga a
indígenas assimilados para que, todo dia desde piora da crise, confrontem migrantes
DAS ENVIADAS A SANTA CRUZ
(BOLÍVIA)
"São uma gente horrorosa.
As collas [índias] fazem cocô
nas ruas e se limpam nas próprias saias. O cheiro é horrível.
É um povo de não-cristãos. Não
compartilham conosco os valores ocidentais e o amor ao capitalismo."
A descrição quem faz é Andrés Gómez, 22, editor, branco,
morador na zona central do departamento de Santa Cruz, o
mais rico e um dos mais aguerridamente anti-Evo Morales. O
objeto da descrição são os moradores do Plán 3000, periferia
de Santa Cruz, favelão com população majoritariamente imigrante do altiplano (La Paz, Cochabamba, Oruro, Potosí, entre
outros), a voz do gueto indígena
e miserável no meio da próspera Santa Cruz.
Há uma semana, os quase
250 mil moradores de Plán
3000 têm sido obrigados a trocar o dia pela noite. or volta as
18h, a praça central do bairro
começa a se encher de gente
que sai de suas casas para passar a noite ao relento. Forma-se
um formigueiro humano, espécie de rua 25 de Março enlameada. É para se defender.
Desde que os departamentos
da chamada meia-lua -as terras baixas na parte oriental da
Bolívia cujos governos fazem
oposição ao presidente- iniciaram o novo ciclo de desafios
ao governo central, gangues de
até mil autonomistas (o pessoal
anti-Morales), assim que o sol
se põe, começam a guerra psicológica: cercam o Plán 3000,
soltam rojões, sobrevoam o local com aviões de pequeno porte, empunham paus, arremessam pedras.
"Para nós é questão de honra
vencer esses índios sujos que
insistem em apoiar Morales",
afirmou à Folha Carlos Ortiz
Cizendo, 15, que vive longe dali.
O menino diz ter recebido 200
bolivianos, ou R$ 40, para
atuar durante toda a noite de
sexta-feira e madrugada de sábado como soldado da tropa de
choque autonomista. "Também recebi comida e um cassetete preto", diz, e mostra, todo
orgulhoso, o instrumento.
Homens, mulheres e crianças correm de um lado para o
outro nas quatro entradas do
bairro, tão logo espalha-se mais
um boato de invasão.
Ateiam fogo a pneus e lançam rojões enquanto seus meninos posicionam-se para a batalha. Essa rotina dura até por
volta das 23h, quando começam os ataques de verdade e os
choques entre os dois grupos. A
polícia não intervém.
Como o pessoal do bairro,
Ortiz tem a tez escura, os olhos
puxados e os cabelos lisos. É indígena, mas se diz um "camba".
"Sou católico, uso banheiro,
sou limpo e ocidental."
O grupo de choque de Ortiz
tem 300 jovens índio-descendentes como ele. Uma van Mitsubishi cheia de jovens universitários brancos distribui porretes, rojões e alimentos. Suprimentos para os invasores.
Em Santa Cruz, existe profunda rivalidade entre os índios que se chamam de "collas"
e os que se denominam "cambas". "Collas" são os que vêm
do altiplano, majoritariamente
pró-Evo Morales. "Camba",
que um branco também pode
ser, significa pertencer ao
mundo moderno, da produção
e do consumo capitalistas.
Rastro de fogoBR>
Na quarta-feira, a milícia
pró-autonomia conseguiu penetrar na rotatória que dá acesso ao Plán 3000. Saqueou o
mercado local. Autonomistas
fugiram com nacos de carne
crua, verduras, arroz e batatas e
deixaram um rastro de fogo e
destruição.
A "Casa do Povo" -sede do
MAS (Movimento ao Socialismo), partido do presidente-,
no coração da favela, tornou-se
foco da resistência. Lá, na sexta-feira, cozinhava-se a alimentação coletiva (canja de galinha
com verduras, arroz, milho e
tomate), preparavam-se coquetéis molotov, paus com pregos, fundas, estilingues e escudos de papelão e madeira. Parece uma guerra de meninos, apesar da gravidade da situação.
Plán 3000 ama Morales. Ele
foi o primeiro presidente a visitar o local, desde que, nos anos
80, transformou-se uma antiga
fazenda em alojamento para
3.000 famílias de flagelados de
uma enchente do rio Piraí.
Morales, que mal consegue
pôr os pés no centro insurgente
de Santa Cruz, já foi a Plán
3000 uma dezena de vezes,
desde sua eleição, há dois anos
e nove meses. Inaugurou o primeiro hospital, a primeira universidade do local, o sistema de
esgoto, escola, praça, a pedra
fundamental do novo mercado.
Jenrry Martínez Román, 43,
é uma das principais lideranças
de Plán 3000. A mãe e o pai, um
dirigente dos trabalhadores em
minas de estanho de Potosí, ele
perdeu, assassinados pelo
Exército, quando ainda era
criança. O avô morreu durante
a guerra do Chaco (que opôs a
Bolívia ao Paraguai, entre 1932
e 1935).
Martínez Román grita palavras de ordem em quéchua e
aymará (línguas indígenas tradicionais) em um megafone
instalado no meio da praça. De
todo o fraseado, só se entende
um "Evo Morales", no fim.
Homens e mulheres respondem, também nessas línguas. O
discurso é transmitido pela rádio Integración, 102,3 MHz,
que convoca a favela e o conjunto residencial Primeiro de
Maio, vizinho, para a vigília, enquanto entremeia toda a locução por jingles que são músicas
de protesto. Estão todos prontos para a batalha.
(LAURA CAPRIGLIONE
E MARLENE BERGAMO)
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