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Após furacões, Haiti atola no sofrimento
País foi atingido por série de tempestades tropicais que deixou ao menos 300 mortos; Gonaïves esteve quase toda submersa
"Foi um Katrina que atingiu todo o país, porém sem as condições que a Louisiana tinha", diz presidente sobre tempestade tropical Hanna
MARC LACEY
DO "NEW YORK TIMES",
EM GONAÏVES, HAITI
As despensas estavam completamente vazias antes que os
ventos começassem a soprar,
os céus se abrissem e essa cidade litorânea se visse recoberta
por uma espécie de muco marrom, espesso e mal cheiroso.
O sofrimento há muito tempo é normal por aqui, transferido geração após geração por
crianças que aprendem que
chorar de nada adianta.
E o persistente espírito de luta do povo de Gonaïves está
sendo testado uma vez mais
por uma sucessão de tempestades tropicais e furacões cujos
nomes os haitianos agora pronunciam em tom de maldição:
Fay, Gustav, Hanna e Ike.
Depois de quatro ferozes
tempestades em menos de um
mês, o pouco que a maioria dos
moradores tinha se transformou em nada. As casas humildes em que eles vivem estão
submersas, e eles hoje moram
sobre os telhados. As vidas
sempre difíceis se tornaram insustentáveis, e a temporada de
furacões mal chegou à metade
de sua duração tradicional.
Edith Pierre toma conta de
seis crianças no telhado de sua
casa, no centro de Gonaïves.
Ela estendeu um lençol para
servir de abrigo, na medida do
possível, contra o sol feroz.
"Agora, não nos resta coisa alguma", disse, antes de parar por
um minuto, contemplar a inundação e repetir, em tom ainda
mais deprimido: "Nada".
Na casa de Daniel Dupliton,
que comanda a Cruz Vermelha
local, parentes, amigos e completos desconhecidos desabrigados estão instalados, mais de
cem pessoas ao todo, ocupando
cada centímetro de espaço nos
cômodos internos e no quintal.
"Existem os abrigos oficiais,
mas também os extra-oficiais,
como a minha casa", disse ele.
Inflação dos alimentos
Moradores do país mais pobre do hemisfério ocidental, os
haitianos agora vão conhecer
miséria ainda maior. Já enfrentavam dificuldades para encontrar comida antes que os furacões varressem suas plantações, matassem seu gado e arrastassem suas modestas reservas de arroz em grandes enxurradas. Agora, o país dependerá
ainda mais de importações, e os
preços elevados dos alimentos
só agravarão a situação.
"A vida era muito, muito difícil, mesmo antes disso", disse
Raphael Chuinard, que está organizando a distribuição de assistência de emergência em
Gonaïves para o Programa de
Alimentação das Nações Unidas. "O índice de subnutrição já
era alto demais. As pessoas estavam resignadas a sofrer."
E agora esse sofrimento deve
piorar. Furacões atingiram as
dez regiões do Haiti e, ao derrubar pontes e inundar estradas,
isolaram bolsões de miséria nas
zonas rurais. Assistentes sociais e autoridades haitianas relataram mais de 300 mortes, a
maioria das quais causadas pela
tempestade Hanna, e estavam
só começando a chegar aos locais mais afetadas.
Em Gonaïves, que ainda continua isolada do resto do Haiti,
os céus ensolarados ajudaram a
reduzir o nível de água nos últimos dias, mas os moradores
ainda precisam caminhar pelas
ruas mergulhados até os tornozelos, os joelhos ou os quadris
nos efluentes. O hospital da cidade e milhares de residências
continuam inundados.
Escolta armada
Levar alimentos aos famintos não é tarefa fácil e depende
de aviões, navios e helicópteros, porque os caminhões estão
atolados na lama. Para conter
as brigas, eles vêm sendo protegidos por soldados argentinos
da missão de paz das Nações
Unidas fortemente armados.
Os políticos haitianos estavam ocupados brigando, enquanto as tempestades se aproximavam. O Legislativo derrubou o último premiê do presidente René Préval, em abril,
depois de distúrbios devido à
falta de alimentos, e rejeitou
duas indicações para o posto.
Michelle Pierre-Louis está
assumindo como primeira-ministra em meio aos esforços de
recuperação. Ela tentou chegar
de carro a Gonaïves alguns dias
atrás, mas não conseguiu. Pierre-Louis sobrevoou a zona de
desastre na terça-feira, o que
gerou resmungos em Gonaïves
por ela não ter aterrissado.
Ao "Miami Herald", o presidente Préval disse que "se trata
de um Katrina que atingiu todo
o país, mas sem termos os
meios que a Louisiana tinha".
Precedente
Gonaïves, a cidade que teve
mais mortes e destruição, sempre foi especialmente vulnerável às ações de furacões. O porto fica na costa norte do país,
em uma planície aluvial, e as
águas não demoram a tomar a
cidade quando os rios transbordam e a enxurrada desce das
montanhas das quais as árvores
foram há muito cortadas. Mas a
mesma geografia oferece potencial agrícola à região, de onde provém boa parte do arroz
cultivado no país.
Foi exatamente assim há
quatro anos, quando o furacão
Jeanne devastou Gonaïves,
matando 3.000 pessoas e derrubando boa parte da cidade.
Desta vez, porém, discute-se se
vale a pena recriá-la uma vez
mais. Autoridades falam em
transferir pessoas que vivem
nas áreas mais baixas.
Há discussões sobre adotar
normas mais severas de construção civil, de modo a que a
próxima tempestade -e todos
sabem que haverá uma próxima- não arraste com tanta facilidade as frágeis estruturas. O
centro local de coordenação de
emergências foi inundado, e
Yolene Surena, que o dirigia,
prometeu que o novo será
construído em local mais alto.
"Deveríamos tê-lo feito da última vez", reconheceu, com um
aceno negativo de cabeça.
Na capital, Porto Príncipe,
Patrick Elie, assessor do presidente e autor de um relatório
sobre se o país deve recriar seu
Exército, disse que as tempestades tornam ainda mais claro
para ele que os maiores inimigos do Haiti não são Exércitos
externos -desde 2004 estão ali
tropas de paz da ONU, sob o comando militar do Brasil.
"Precisamos de um sistema
de defesa civil", disse. "Essas
tempestades ilustram a fraqueza do Estado haitiano. Por que
sempre somos apanhados de
surpresa por uma tempestade
se sabemos que elas virão?"
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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