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São Paulo, terça-feira, 14 de outubro de 2003

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ANÁLISE

Crise tem vários combustíveis

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Parece exótico que um presidente da República, como o boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada, esteja a ponto de perder o emprego pela simples razão de que aprovou projeto para exportar gás boliviano para os Estados Unidos via Chile.
Por mais que o tempo não tenha apagado os ódios pelo fato de a Bolívia ter perdido para o Chile sua saída para o mar, na Guerra do Pacífico (1879-83), parece uma razão pouco plausível para um levante popular tão vigoroso que colocou o presidente contra as cordas.
É de fato pouco plausível. O ódio ao Chile é apenas uma das gotas do combustível que incendiou a Bolívia e ameaça devorar o presidente.
Mais que o porto pelo qual exportar o gás, o que está em questão é, na verdade, o processo de privatização das estatais bolivianas, executado na primeira Presidência Sánchez de Lozada, a partir de 1993.
O movimento de protesto questiona, por exemplo, a idéia de exportar gás para os Estados Unidos, em vez de fornecê-lo gratuitamente às 250 mil residências que não têm acesso ao combustível. Ainda mais que, sempre segundo a propaganda oposicionista, o Estado boliviano fica com apenas 18% do total da venda. O restante vai para o setor privado, que ficou com a YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, a Petrobras local).
De alguma forma, repete-se o problema que houve com as privatizações na Argentina, na medida em que, em um país como no outro, uma das novas donas do combustível é a espanhola Repsol.
O impasse político em torno do gás é mortal: a Bolívia é dona da segunda maior reserva de gás natural da América Latina e, se puder vendê-lo nas condições previstas, sua economia terá um ganho adicional de 1%, segundo os cálculos do Fundo Monetário Internacional.
A suspensão do projeto, decidida ontem pelo presidente, para submetê-lo a uma consulta popular, tende a significar a paralisação da venda, conhecida que é a oposição majoritária ao plano.
Consequência: o país continuará patinando na recessão, que, por sua vez, alimenta a pobreza, que é o pano de fundo secular das crises políticas recorrentes na Bolívia.
Como em quase toda a América Latina, o ritmo de expansão na Bolívia estancou no final dos anos 90. A partir daí, o crescimento da economia mal cobre, quando cobre, o crescimento populacional.
No ano passado, por exemplo, o país cresceu 2,4%, o que representa virtual estagnação da renda per capita, cujo aumento foi esquelético (0,4%). Neste ano, a Cepal (o braço econômico da ONU para a América Latina) prevê crescimento ainda menor (inferior a 2%).
Para o país que disputa com o Haiti e o Paraguai o título de mais pobre da sub-região, esse magro crescimento só pode funcionar como mais combustível para o protesto. As manifestações não são, ao contrário do que ocorre agora, apenas dos movimentos populares. Até os comerciantes já se juntaram às paralisações anteriores.
Mas a liderança no momento é de dois líderes nitidamente de esquerda: um é Evo Morales, que comanda os plantadores de coca, a folha que, processada, resulta na cocaína. Ele perdeu a eleição presidencial de 2002 para Sánchez de Lozada.
O outro é o líder indígena Felipe Quispe, cuja importância se mede pelo número majoritário de bolivianos (61%) que se identificam como indígenas.
Nesse cenário, suspender o projeto de exportação de gás pode ter sido a única saída do presidente para conter os protestos (e as mortes decorrentes da repressão a eles).
Mas está longe de ser o único dos problemas que assombram um presidente que jamais foi muito popular: nas três eleições presidenciais de que participou, teve apenas 23% dos votos (1989), 37,8% (1993, sua primeira vitória) e 22,5% no ano passado.

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