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ANÁLISE
Crise tem vários combustíveis
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Parece exótico que um presidente da República, como o boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada, esteja a ponto de perder o emprego pela simples razão de que
aprovou projeto para exportar
gás boliviano para os Estados
Unidos via Chile.
Por mais que o tempo não tenha
apagado os ódios pelo fato de a
Bolívia ter perdido para o Chile
sua saída para o mar, na Guerra
do Pacífico (1879-83), parece uma
razão pouco plausível para um levante popular tão vigoroso que
colocou o presidente contra as
cordas.
É de fato pouco plausível. O
ódio ao Chile é apenas uma das
gotas do combustível que incendiou a Bolívia e ameaça devorar o
presidente.
Mais que o porto pelo qual exportar o gás, o que está em questão é, na verdade, o processo de
privatização das estatais bolivianas, executado na primeira Presidência Sánchez de Lozada, a partir de 1993.
O movimento de protesto questiona, por exemplo, a idéia de exportar gás para os Estados Unidos, em vez de fornecê-lo gratuitamente às 250 mil residências
que não têm acesso ao combustível. Ainda mais que, sempre segundo a propaganda oposicionista, o Estado boliviano fica com
apenas 18% do total da venda. O
restante vai para o setor privado,
que ficou com a YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, a Petrobras local).
De alguma forma, repete-se o
problema que houve com as privatizações na Argentina, na medida em que, em um país como no
outro, uma das novas donas do
combustível é a espanhola Repsol.
O impasse político em torno do
gás é mortal: a Bolívia é dona da
segunda maior reserva de gás natural da América Latina e, se puder vendê-lo nas condições previstas, sua economia terá um ganho adicional de 1%, segundo os
cálculos do Fundo Monetário Internacional.
A suspensão do projeto, decidida ontem pelo presidente, para
submetê-lo a uma consulta popular, tende a significar a paralisação
da venda, conhecida que é a oposição majoritária ao plano.
Consequência: o país continuará patinando na recessão, que,
por sua vez, alimenta a pobreza,
que é o pano de fundo secular das
crises políticas recorrentes na Bolívia.
Como em quase toda a América
Latina, o ritmo de expansão na
Bolívia estancou no final dos anos
90. A partir daí, o crescimento da
economia mal cobre, quando cobre, o crescimento populacional.
No ano passado, por exemplo, o
país cresceu 2,4%, o que representa virtual estagnação da renda per
capita, cujo aumento foi esquelético (0,4%). Neste ano, a Cepal (o
braço econômico da ONU para a
América Latina) prevê crescimento ainda menor (inferior a
2%).
Para o país que disputa com o
Haiti e o Paraguai o título de mais
pobre da sub-região, esse magro
crescimento só pode funcionar
como mais combustível para o
protesto. As manifestações não
são, ao contrário do que ocorre
agora, apenas dos movimentos
populares. Até os comerciantes já
se juntaram às paralisações anteriores.
Mas a liderança no momento é
de dois líderes nitidamente de esquerda: um é Evo Morales, que
comanda os plantadores de coca,
a folha que, processada, resulta na
cocaína. Ele perdeu a eleição presidencial de 2002 para Sánchez de
Lozada.
O outro é o líder indígena Felipe
Quispe, cuja importância se mede
pelo número majoritário de bolivianos (61%) que se identificam
como indígenas.
Nesse cenário, suspender o projeto de exportação de gás pode ter
sido a única saída do presidente
para conter os protestos (e as
mortes decorrentes da repressão
a eles).
Mas está longe de ser o único
dos problemas que assombram
um presidente que jamais foi
muito popular: nas três eleições
presidenciais de que participou,
teve apenas 23% dos votos (1989),
37,8% (1993, sua primeira vitória)
e 22,5% no ano passado.
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