São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO


Legado de Arafat é a negociação para a paz

MIGUEL ANGEL MORATINOS
ESPECIAL PARA O "INDEPENDENT"

O presidente Arafat é história. Com isso, não quero dizer que ele pertença ao passado porque morreu. Pelo contrário: seus esforços incansáveis, feitos ao longo de tantos anos, representam a esperança da população palestina. Simplesmente, hoje o Estado palestino é uma perspectiva mais possível do que nunca, graças justamente a Arafat.
Abdel Raouf, seu nome de nascimento, será lembrado pelos palestinos como a personificação de sua luta para alcançar a condição de Estado. Ele também será lembrado por sua expressão sorridente e seu constante bom humor, apesar dos tempos difíceis que precisou suportar. Com seu tradicional kaffieh, tão axadrezado quanto a geografia da Palestina, e seu uniforme militar verde-oliva, Arafat se firmou aos olhos e na imaginação do público como guerreiro incansável que se dedicou a sua causa de corpo e alma. O fervor que ele despertava em seu povo constitui um testemunho da legitimidade de sua causa.
Eu o conheci muito bem. De coração, reconheço e sou testemunha de sua luta brava e honrada. Compartilhamos muitas horas em fases diferentes da história recente da Palestina. Arafat era um homem de coração caloroso, como as pessoas tendem a ser naquelas terras, independentemente da nacionalidade ou cultura.
Tanto Yitzhak Rabin quanto Iasser Arafat acreditavam que Jerusalém fosse uma cidade única e queriam fazer dela um centro de esperança e convivência pacífica. Ambos assinaram os acordos de Oslo, as bases de uma paz para os bravos, como Arafat os descrevia com tanta insistência. Mesmo hoje, muitos ainda se opõem àquele salto inovador, que implicou em abrir mão da dinâmica do confronto, pela primeira vez. No entanto, as sementes lançadas por Rabin e Arafat naqueles acordos históricos continuam vivas.
Arafat, que foi democraticamente eleito presidente palestino, foi um grande líder de seu povo. Ele era tenaz e defendeu os interesses palestinos com bravura. Ele estava consciente de que, para que os palestinos pudessem desfrutar de paz e liberdade, precisavam poder eleger seus representantes e seus parlamentares de maneira livre, sob supervisão internacional. Assim, a legitimidade de suas ações era respaldada pelo apoio popular, conforme evidenciado por eleições democráticas.
Arafat sobreviveu a muitas décadas de exílio, bombardeios, um acidente aéreo que lhe deixou problemas de saúde permanentes, ataques por mísseis (um dos quais sofremos juntos, dois anos atrás), a dor lancinante de ser incompreendido e, por vezes, o isolamento. Seus últimos anos de vida foram obscurecidos pelo confinamento dentro de seu quartel-general da Muqata -mas, mesmo assim, ele continuou a lutar para defender seu povo, inspirando negociações e buscando caminhos alternativos para a paz. E é esse, basicamente, seu legado.
Nem tudo no histórico de Arafat é imaculado. Ele foi politicamente incapaz de canalizar a frustração palestina e não conseguiu controlar a segunda Intifada. Como eu, pessoalmente, tive a oportunidade de lhe apontar em mais de uma ocasião, ele foi incapaz ou não se dispôs a deixar de lado o manto do líder revolucionário e assumir a solidez institucional de um chefe de Estado genuíno. Ele também podia ser criticado por não agir com firmeza suficiente em relação a alguns de seus aliados, mais preocupados com suas ambições próprias do que com a causa da população palestina.
Muitos finais são, na realidade, novos começos, e a morte de Arafat deve nos deixar em condições de alcançar a paz. Precisamos superar a tentação de olhar para trás, para onde a dor e o sofrimento grassaram abundantes. A história deve julgar Arafat com inteligência e honestidade. Não faltaram em sua vida ação, visão ou coragem política. Que ele descanse em paz, e que o povo palestino o honre conquistando um futuro como Estado independente e fundamentado nas boas relações com seus vizinhos, no respeito mútuo, na convivência pacífica e na cooperação com Israel.


Miguel Angel Moratinos é chanceler da Espanha e foi enviado da UE ao Oriente Médio entre 1996 e 2003.

Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Artigo: O que dirão sobre Arafat?
Próximo Texto: Iraque sob tutela: Iraque diz que completou ação em Fallujah
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.