São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2004

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EUA

Para o analista Adam Przeworski, a votação recebida dessa fatia deve pressionar o partido a abandonar tendência centrista

Jovens podem levar democratas à esquerda

MARIA BRANT
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Os resultados eleitorais da semana passada nos EUA refletem uma profunda divisão interna, que diz respeito principalmente à esfera cultural. Os democratas saíram perdedores desta vez, mas, graças ao apoio que receberam dos jovens, poderão sofrer uma guinada à esquerda.
Essa é a avaliação do cientista político Adam Przeworski, da Universidade de Nova York, autor de "States and Markets" (Estados e mercados, 2003) e "Sustainable Democracy" (democracia sustentável, 1995), entre outros.
Para ele, a votação majoritária -e inédita- que o Partido Democrata teve entre eleitores de primeira viagem, aliada ao fato de que a maioria deles eleitores identifica-se com a esquerda do partido, deverá ter grande influência nas próximas eleições primárias.
Na entrevista que deu à Folha, de Nova York, Przeworski disse ainda que o perfil desse novo eleitorado ainda não é totalmente claro, mas que a internet confirmou seu papel como importante instrumento de mobilização e participação política desse grupo.

Folha - Como o sr. avalia a divisão do eleitorado dos EUA refletida no resultado das eleições?
Adam Przeworski -
As divisões são intensas, profundas e surpreendentemente estáveis. Elas têm crescido nos últimos 20 anos, tanto no eleitorado quanto entre os políticos. A estratégia republicana na última eleição foi inédita: em vez de tentar persuadir eleitores do centro político, optaram por mobilizar a extrema direita.
O resultado é que os EUA são hoje um país polarizado. De acordo com algumas pesquisas, 79% das pessoas que votaram em Bush achavam que a economia estava melhor, e 90% dos eleitores de Kerry, que estava pior; 85% dos eleitores de Bush achavam que a guerra contra o Iraque vale a pena, 89% dos de Kerry, que não.

Folha - O sr. acha que a divisão reflete diferenças reais em termos das posições dos partidos?
Przeworski -
As diferenças entre os partidos são reais. Até certo ponto, elas dizem respeito a políticas: impostos, assistência médica, militares servindo no exterior e políticas comerciais e ambientais. Mas essas diferenças não são o que divide mais intensamente: no final das contas, se Kerry tivesse sido eleito, suas políticas não teriam sido muito diferentes.
As divisões mais profundas são culturais: a freqüência a igrejas foi um fator de previsão de voto muito mais importante do que a renda em 2000 e ainda mais em 2004.
Há dois países nos EUA: os mapas eleitorais os mostram como vermelho e azul.
Geograficamente, os habitantes do sul, das grandes planícies e do oeste montanhoso são religiosos, culturalmente repressivos e carregam armas. O oeste e o noroeste são socialmente progressistas e culturalmente tolerantes.
Sociologicamente, três quintos dos eleitores de áreas rurais, donos de armas e casados votaram em Bush; Kerry teve a maioria dos votos de moradores de áreas urbanas e solteiros. Em 2004, Bush perdeu votos entre eleitores com curso superior e entre jovens, de modo que essas divisões se tornaram alinhadas ainda mais consistentemente com valores culturais.
Além disso, 23% do eleitorado americano se diz evangélico. Os republicanos recorreram a essas pessoas para obter apoio. Como uma medida estratégica, pediram referendos contra o casamento gay em 11 Estados: eles venceram em todos, e, em seis deles, não apenas o casamento mas até as uniões civis foram rejeitadas. Guerras culturais sempre provocam intensas divisões políticas, e é isso que está ocorrendo nos EUA.

Folha - Para alguns analistas, o Partido Democrata tem duas opções agora: mover-se ainda mais para a direita ou mostrar que tem posição verdadeiramente diferentes das dos republicanos.
Przeworski -
O Partido Democrata está completamente desordenado, e não se pode esperar que consiga forjar uma estratégia coerente de nenhum tipo. É só observar que 45% das pessoas que votaram em Kerry disseram que estavam votando mais contra Bush do que a favor do candidato democrata. Os discursos sobre união são só o típico discurso vazio pós-eleição. Alguns democratas ficaram intimidados a ponto de querer imitar republicanos no futuro para ganhar o eleitorado religioso. Mas não acho que essa tendência possa prevalecer.
Em primeiro lugar, os democratas têm um "hard core" de eleitores instruídos e urbanos, grande parte dos quais vão querer enfatizar questões econômicas, particularmente a assistência médica.
Em segundo lugar, pela primeira vez em anos a grande maioria dos eleitores jovens votou nos democratas. O eleitorado democrata, então, pode ter se movido para a esquerda. Isso é importante por causa das primárias: para se tornar candidato, é preciso primeiro vencer dentro do partido.
O momento de decisão para o partido ocorrerá com as nomeações para a Suprema Corte. Nesse momento, os democratas terão de assumir uma posição, e o conflito será intenso.

Folha - Qual é o perfil desse eleitorado jovem? A vitória de Bush vai fortalecê-lo ou desmotivá-lo?
Przeworski -
Ainda não sabemos muito sobre esse eleitorado. Normalmente, as proporções de votos na faixa etária dos jovens que acabam de se tornar eleitores tende a ser as mesmas que as das faixas mais velhas. Na eleição de 2000, pessoas que tinham entre 18 e 29 anos de idade dividiram-se igualmente entre Bush e Al Gore. Mas, desta vez, 56% deles votaram em Kerry. Suspeito que sua principal motivação tenha sido a guerra [no Iraque], mas eles também podem ter dado atenção a questões culturais, como o aborto e os direitos dos homossexuais.
O que acontecerá com eles depende muito da nova liderança do Partido Democrata. Se os democratas decidirem imitar os republicanos, os jovens ficarão desmotivados. Mas Howard Dean tem eleitorado sólido entre jovens e vai tentar mantê-los mobilizados. E a pessoa que pode mobilizá-los é Hillary Clinton, que quase certamente será candidata em 2008.
Com os jovens votando nos democratas, a "demografia" está trabalhando a favor dos democratas. Os republicanos tiveram um bom desempenho em áreas rurais, entre mulheres casadas e nos subúrbios. Exceto pelo de moradores de subúrbios, os números desses grupos estão caindo.

Folha - Candidatos de outros partidos podem se fortalecer?
Przeworski -
A idéia de candidatos de outros partidos vai continuar morta por algum tempo. Mas acho que podemos esperar mobilizações via internet.
É uma nova forma de mobilização política. Ajudou candidatos democratas a levantar uma quantidade significativa de dinheiro por meio de pequenas doações na última campanha. Além disso, websites fazem o que partidos políticos costumavam fazer há muito tempo: mantém contato, informam e coordenam ações nos períodos entre as eleições.

Folha - Mais cedo, o sr. enfatizou a intensidade dos conflitos internos nos EUA. Mas o fato é que, de fora, é difícil ver diferença entre muitas atitudes republicanas e democratas. Onde se manifestam os conflitos? O fato de Bush ter ganho maioria também no Congresso não diminuirá sua importância?
Przeworski -
Os conflitos mais profundos são culturais. Questões econômicas provocam divisões, mas podem ser resolvidas chegando-se a um meio-termo. Segundo o modelo padrão com o qual cientistas políticos analisam eleições, há pessoas que querem que os impostos sejam altos e outras que desejam que eles sejam baixos, e os partidos convergem para o meio dessa distribuição.
Mas questões culturais não geram um centro. É verdade que é possível buscar meios-termos: em vez de casamento gay, podemos ter uniões civis; em vez de permitir ou proibir o aborto, podemos permiti-lo em alguns casos e proibi-lo em outros. Mas é uma trégua temporária: as pessoas de ambos os lados ficam profundamente insatisfeitas com soluções desse tipo. Elas têm certeza de que a verdade, a moral, ou até mesmo Deus, está do seu lado, e acham esses meios-termos repugnantes. Já tivemos situações assim na história de vários outros países: a Alemanha passou pela "kulturkampf" no final do século 19. E elas sempre geram polarização e conflitos intensos.
Os EUA vivem um período desses. Uma maioria quer impor sua moral e seus valores a outros através da lei. E uma minoria se sente oprimida e resiste. É por isso que, no fim, essa eleição dizia menos respeito a políticas do que a valores básicos. Cerca de metade dos que votaram em Kerry teriam votado em qualquer pessoa contra Bush. Votaram em Kerry apesar de saber que sua política externa e suas políticas econômicas não seriam muito diferentes das de Bush. Votaram contra Bush por causa do que ele representa, e não por causa do que ele faz.
Não há conexão lógica entre conflitos culturais e ações agressivas na esfera internacional. Mas a direita religiosa é intensamente pró-Israel, antimuçulmana e contra o "multilateralismo". Assim, ações agressivas de política externa têm apoio desses eleitores. Temo que o governo seja levado a ações convulsivas no exterior para manter seu apoio interno. É por isso que acho que os EUA não podem ser tratados agora como parceiro confiável, seja em políticas militares ou comerciais.


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