|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
EUA
Para o analista Adam Przeworski, a votação recebida dessa fatia deve pressionar o partido a abandonar tendência centrista
Jovens podem levar democratas à esquerda
MARIA BRANT
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Os resultados eleitorais da semana passada nos EUA refletem
uma profunda divisão interna,
que diz respeito principalmente à
esfera cultural. Os democratas
saíram perdedores desta vez, mas,
graças ao apoio que receberam
dos jovens, poderão sofrer uma
guinada à esquerda.
Essa é a avaliação do cientista
político Adam Przeworski, da
Universidade de Nova York, autor de "States and Markets" (Estados e mercados, 2003) e "Sustainable Democracy" (democracia
sustentável, 1995), entre outros.
Para ele, a votação majoritária
-e inédita- que o Partido Democrata teve entre eleitores de
primeira viagem, aliada ao fato de
que a maioria deles eleitores identifica-se com a esquerda do partido, deverá ter
grande influência
nas próximas eleições primárias.
Na entrevista
que deu à Folha,
de Nova York,
Przeworski disse
ainda que o perfil
desse novo eleitorado ainda não é
totalmente claro,
mas que a internet
confirmou seu papel como importante instrumento
de mobilização e
participação política desse grupo.
Folha - Como o sr.
avalia a divisão do
eleitorado dos EUA
refletida no resultado das eleições?
Adam Przeworski - As divisões
são intensas, profundas e surpreendentemente estáveis. Elas
têm crescido nos últimos 20 anos,
tanto no eleitorado quanto entre
os políticos. A estratégia republicana na última eleição foi inédita:
em vez de tentar persuadir eleitores do centro político, optaram
por mobilizar a extrema direita.
O resultado é que os EUA são
hoje um país polarizado. De acordo com algumas pesquisas, 79%
das pessoas que votaram em Bush
achavam que a economia estava
melhor, e 90% dos eleitores de
Kerry, que estava pior; 85% dos
eleitores de Bush achavam que a
guerra contra o Iraque vale a pena, 89% dos de Kerry, que não.
Folha - O sr. acha que a divisão reflete diferenças reais em termos
das posições dos partidos?
Przeworski - As diferenças entre
os partidos são reais. Até certo
ponto, elas dizem respeito a políticas: impostos, assistência médica, militares servindo no exterior
e políticas comerciais e ambientais. Mas essas diferenças não são
o que divide mais intensamente:
no final das contas, se Kerry tivesse sido eleito, suas políticas não
teriam sido muito diferentes.
As divisões mais profundas são
culturais: a freqüência a igrejas foi
um fator de previsão de voto muito mais importante do que a renda em 2000 e ainda mais em 2004.
Há dois países nos EUA: os mapas eleitorais os mostram como
vermelho e azul.
Geograficamente, os habitantes
do sul, das grandes planícies e do
oeste montanhoso são religiosos,
culturalmente repressivos e carregam armas. O oeste e o noroeste
são socialmente progressistas e
culturalmente tolerantes.
Sociologicamente, três quintos
dos eleitores de áreas rurais, donos de armas e casados votaram
em Bush; Kerry teve a maioria dos
votos de moradores de áreas urbanas e solteiros. Em 2004, Bush
perdeu votos entre eleitores com
curso superior e entre jovens, de
modo que essas
divisões se tornaram alinhadas
ainda mais consistentemente
com valores culturais.
Além disso, 23%
do eleitorado
americano se diz
evangélico. Os republicanos recorreram a essas pessoas para obter
apoio. Como uma
medida estratégica, pediram referendos contra o
casamento gay em
11 Estados: eles
venceram em todos, e, em seis deles, não apenas o
casamento mas
até as uniões civis foram rejeitadas. Guerras culturais sempre
provocam intensas divisões políticas, e é isso que está ocorrendo
nos EUA.
Folha - Para alguns analistas, o
Partido Democrata tem duas opções agora: mover-se ainda mais
para a direita ou mostrar que tem
posição verdadeiramente diferentes das dos republicanos.
Przeworski - O Partido Democrata está completamente desordenado, e não se pode esperar que
consiga forjar uma estratégia coerente de nenhum tipo. É só observar que 45% das pessoas que votaram em Kerry disseram que estavam votando mais contra Bush
do que a favor do candidato democrata. Os discursos sobre
união são só o típico discurso vazio pós-eleição. Alguns democratas ficaram intimidados a ponto
de querer imitar republicanos no
futuro para ganhar o eleitorado
religioso. Mas não acho que essa
tendência possa prevalecer.
Em primeiro lugar, os democratas têm um "hard core" de eleitores instruídos e urbanos, grande
parte dos quais vão querer enfatizar questões econômicas, particularmente a assistência médica.
Em segundo lugar, pela primeira vez em anos a grande maioria
dos eleitores jovens votou nos democratas. O eleitorado democrata, então, pode ter se movido para
a esquerda. Isso é importante por
causa das primárias: para se tornar candidato, é preciso primeiro
vencer dentro do partido.
O momento de decisão para o
partido ocorrerá com as nomeações para a Suprema Corte. Nesse
momento, os democratas terão de
assumir uma posição, e o conflito
será intenso.
Folha - Qual é o perfil desse eleitorado jovem? A vitória de Bush vai
fortalecê-lo ou desmotivá-lo?
Przeworski - Ainda não sabemos
muito sobre esse eleitorado. Normalmente, as proporções de votos na faixa etária dos jovens que
acabam de se tornar eleitores tende a ser as mesmas que as das faixas mais velhas. Na eleição de
2000, pessoas que tinham entre 18
e 29 anos de idade dividiram-se
igualmente entre Bush e Al Gore.
Mas, desta vez, 56% deles votaram em Kerry. Suspeito que sua
principal motivação tenha sido a
guerra [no Iraque], mas eles também podem ter dado atenção a
questões culturais, como o aborto
e os direitos dos homossexuais.
O que acontecerá com eles depende muito da nova liderança do
Partido Democrata. Se os democratas decidirem imitar os republicanos, os jovens ficarão desmotivados. Mas Howard Dean tem
eleitorado sólido entre jovens e
vai tentar mantê-los mobilizados.
E a pessoa que pode mobilizá-los
é Hillary Clinton, que quase certamente será candidata em 2008.
Com os jovens votando nos democratas, a "demografia" está
trabalhando a favor dos democratas. Os republicanos tiveram um
bom desempenho em áreas rurais, entre mulheres casadas e nos
subúrbios. Exceto pelo de moradores de subúrbios, os números
desses grupos estão caindo.
Folha - Candidatos de outros partidos podem se fortalecer?
Przeworski - A idéia de candidatos de outros partidos vai continuar morta por algum tempo.
Mas acho que podemos esperar
mobilizações via internet.
É uma nova forma de mobilização política. Ajudou candidatos
democratas a levantar uma quantidade significativa de dinheiro
por meio de pequenas doações na
última campanha. Além disso,
websites fazem o que partidos políticos costumavam fazer há muito tempo: mantém contato, informam e coordenam ações nos períodos entre as eleições.
Folha - Mais cedo, o sr. enfatizou
a intensidade dos conflitos internos nos EUA. Mas o fato é que, de
fora, é difícil ver diferença entre
muitas atitudes republicanas e democratas. Onde se manifestam os
conflitos? O fato de Bush ter ganho
maioria também no Congresso não
diminuirá sua importância?
Przeworski - Os conflitos mais
profundos são culturais. Questões
econômicas provocam divisões,
mas podem ser resolvidas chegando-se a um meio-termo. Segundo o modelo padrão com o
qual cientistas políticos analisam
eleições, há pessoas que querem
que os impostos sejam altos e outras que desejam que eles sejam
baixos, e os partidos convergem
para o meio dessa distribuição.
Mas questões culturais não geram um centro. É verdade que é
possível buscar meios-termos: em
vez de casamento gay, podemos
ter uniões civis; em vez de permitir ou proibir o aborto, podemos
permiti-lo em alguns casos e proibi-lo em outros. Mas é uma trégua
temporária: as pessoas de ambos
os lados ficam profundamente insatisfeitas com soluções desse tipo. Elas têm certeza de que a verdade, a moral, ou até mesmo
Deus, está do seu lado, e acham
esses meios-termos repugnantes.
Já tivemos situações assim na história de vários outros países: a
Alemanha passou pela "kulturkampf" no final do século 19. E
elas sempre geram polarização e
conflitos intensos.
Os EUA vivem um período desses. Uma maioria quer impor sua
moral e seus valores a outros através da lei. E uma minoria se sente
oprimida e resiste. É por isso que,
no fim, essa eleição dizia menos
respeito a políticas do que a valores básicos. Cerca de metade dos
que votaram em Kerry teriam votado em qualquer pessoa contra
Bush. Votaram em Kerry apesar
de saber que sua política externa e
suas políticas econômicas não seriam muito diferentes das de
Bush. Votaram contra Bush por
causa do que ele representa, e não
por causa do que ele faz.
Não há conexão lógica entre
conflitos culturais e ações agressivas na esfera internacional. Mas a
direita religiosa é intensamente
pró-Israel, antimuçulmana e contra o "multilateralismo". Assim,
ações agressivas de política externa têm apoio desses eleitores. Temo que o governo seja levado a
ações convulsivas no exterior para manter seu apoio interno. É
por isso que acho que os EUA não
podem ser tratados agora como
parceiro confiável, seja em políticas militares ou comerciais.
Texto Anterior: EUA: Cheney faz exames por problemas de respiração Próximo Texto: Frases Índice
|