São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2004

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ARTIGO

Bush tende a enfatizar comércio com AL

MARCO VICENZINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No que tange à América Latina, o segundo mandato de George W. Bush tenderá em geral a favorecer mais as iniciativas de livre comércio. No entanto a capacidade de manobra de Bush será determinada, em última análise, pelo Congresso, que é mais protecionista, por natureza.
Bush continuará a trabalhar em estreita cooperação com a Argentina, em suas negociações de dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ainda que os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) possam preferir um acordo de livre comércio com a União Européia, devido ao maior volume de comércio, as negociações entre o bloco comercial e os europeus atingiram um impasse recentemente, e o comércio com os Estados Unidos vem crescendo em ritmo acelerado.

Alca
O progresso quanto ao estabelecimento da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) dependerá da disposição dos Estados Unidos e do Brasil para realizar concessões significativas a fim de galvanizar e acelerar as negociações. Ainda que as relações com o Brasil devam continuar a ser determinadas em larga medida pelas questões de comércio, a liderança brasileira nas forças de paz das Nações Unidas no Haiti pode ter introduzido uma nova dinâmica nas relações entre brasileiros e norte-americanos.
A tendência pode se desenvolver ainda mais, em longo prazo, caso o Brasil venha a assumir mais responsabilidade por iniciativas que envolvam desafios de alcance hemisférico.
A recente controvérsia entre o Brasil e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) provavelmente não causará fricção com os EUA.
Na região andina, Bush continuará a oferecer apoio inequívoco ao Plano Colômbia e a manter relações estreitas com o presidente Álvaro Uribe. O presidente norte-americano continuará a monitorar de longe as situações voláteis de Peru, Equador e Bolívia.
A simples percepção de um envolvimento norte-americano excessivo poderia deflagrar uma reação popular contra os governos atualmente instáveis da região.
Os líderes do Equador e do Peru têm recebido um apoio muito baixo nas pesquisas de opinião e continuam ocupando posições vulneráveis diante dos movimentos esquerdistas que vêm emergindo na região, inspirados pela vitória de Hugo Chávez, da Venezuela, em um plebiscito quanto à conclusão de seu mandato, e pela derrubada do presidente democraticamente eleito da Bolívia no ano passado.
Para o futuro imediato, esses acontecimentos terão menos impacto sobre a Bolívia, que controla a segunda maior reserva de gás natural do continente, atrás da Venezuela, e continua sendo o país mais pobre da região.
O presidente Carlos Mesa, que assumiu quando seu predecessor foi derrubado depois de protestos violentos no ano passado, venceu em julho um referendo sobre o petróleo e o gás natural, o que lhe dá um mandato claro e a estabilidade necessária para comandar o governo, pelo menos em curto prazo.
Mas a relação de Bush com o Peru, Equador e Bolívia será influenciada, em larga medida, pelo resultado das negociações para criar um acordo de livre comércio com a região andina.

Venezuela
No que tange à Venezuela, manter o status quo estabelecido desde o referendo de agosto e evitar um confronto continua a ser conveniente, de parte a parte, até as eleições presidenciais venezuelanas marcadas para 2006. Isso permite a Chávez que continue a implementar sua agenda revolucionária, com interferência externa limitada, excetuadas as expressões de preocupação quanto a violações dos direitos humanos de parte dos Estados Unidos, da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de seus países membros.
Com a volatilidade da economia norte-americana, a ameaça terrorista, a alta da demanda chinesa e as dificuldades em países produtores de petróleo como a Rússia, a Nigéria e a Noruega, a última coisa de que Bush precisa é de outra crise desestabilizadora na Venezuela que viesse a elevar o preço já exagerado do petróleo.
As relações com a América Central dependem em larga medida do resultado das negociações do Acordo Centro-Americano de Livre Comércio (Acalc), que já foi assinado por Bush, mas ainda não obteve a ratificação do Congresso. Sua única chance real de sobrevivência depende de lobby efetivo e persistente do governo junto ao Legislativo, coordenado com a ação de grupos hispânicos influentes nos Estados Unidos e de organizações de defesa do livre mercado.
A política norte-americana para com Cuba continuará a ser determinada em larga medida pela comunidade cubana nos Estados Unidos. A decisão do presidente Fidel Castro de tornar ilegal o uso de dólares em seu país complicou ainda mais a vida dos cubanos comuns, muitos dos quais dependem de dinheiro enviado por parentes instalados nos Estados Unidos para sobreviver. A triste realidade é que, não importa que política os norte-americanos adotem, nada vai mudar na ilha enquanto Castro sobreviver. Quaisquer aparentes concessões de sua parte só são feitas para garantir a sobrevivência da revolução que ele liderou.
No Caribe, Bush terá de continuar acompanhando de perto a situação do Haiti, mas fornecerá recursos modestos, sem envolvimento em larga escala. Ou seja, a menos que o caos completo volte a tomar o país e ressurja a ameaça de uma crise de refugiados, com milhares de haitianos chegando às costas da Flórida, os Estados Unidos continuarão relutando em deslocar soldados para a região, baseados na experiência de 1994, quando 20 mil soldados norte-americanos foram enviados ao Haiti e, passados dez anos da intervenção, não se pode constatar nenhuma melhora perceptível da situação.
Bush espera contar com a cooperação de organizações regionais e internacionais, especialmente a ONU, para lidar com a situação do Haiti.
Na República Dominicana, dificuldades econômicas sérias para o governo do presidente Leonel Fernandez podem requerer maior envolvimento norte-americano no futuro imediato.
O mais importante relacionamento norte-americano na América Latina continuará a ser com seu vizinho ao sul, o México. As questões mais prementes entre os dois países são segurança, comércio e imigração.
Bush vai querer ampliar a cooperação em assuntos de segurança, primordialmente questões de fronteira. Quanto ao comércio, Bush deve mostrar maior flexibilidade diante das demandas mexicanas por uma implementação mais completa do Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta).
A imigração continua a ser uma questão enormemente sensível nos Estados Unidos, especialmente depois do 11 de Setembro, e particularmente no Congresso norte-americano. Bush pode tentar explorar mais iniciativas delimitadas por normas legislativas.
Antes do 11 de Setembro, Bush tentou criar uma nova relação com o México, na qual o papel da imigração seria um elemento importante. Os atentados puseram fim à iniciativa, e ainda resta determinar se ele conseguirá retomá-la em seu segundo mandato. Isso será em larga medida definido pelo novo Congresso depois de janeiro.
Depois da renúncia de Miguel Angel Rodriguez como secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), a organização operará sob a condução de Luigi Einaudi até que um novo secretário-geral seja eleito na próxima assembléia geral do grupo, em junho.
Até lá, negociações para definir um candidato provavelmente dominarão a agenda. Bush apoiará um candidato com histórico responsável de credenciais democráticas e comprometido com a transparência, com a prestação de contas e com a integridade. Infelizmente, todas as iniciativas importantes estarão suspensas até que a sucessão na OEA seja decidida. Os desafios e questões que requerem atenção imediata serão portanto deixados de lado, criando um certo senso de paralisia hemisférica.
A realidade é que, com a campanha internacional contra o terrorismo, o conflito no Iraque, o fiasco na Coréia do Norte, a crise que cresce no Irã e as tensões nas relações entre a Europa e os Estados Unidos, é improvável que a América Latina se torne uma prioridade no segundo mandato de Bush.

Desafios sérios
Depois de décadas de tumultos e turbulência, a democracia prevalece nas Américas, com exceção de Cuba. No entanto, muitas das democracias da região continuam a ser frágeis e instáveis. A fim de prosperarem, precisam ser alimentadas e consolidadas ao longo do tempo.
As dificuldades econômicas, a corrupção endêmica, a necessidade de desenvolver as instituições da sociedade civil e de garantir a confiança pública nelas continuam a ser desafios sérios que ameaçam a existência da democracia nas Américas.
Os Estados Unidos precisam continuar envolvidos nos assuntos hemisféricos para ajudar na superação desses desafios. Caso não o façam, os tumultos e turbulências do passado retornarão e os norte-americanos se verão forçados a renovar seu envolvimento por necessidade, e não por escolha.


Marco Vicenzino é analista político e especialista em assuntos internacionais, foi diretor de América Latina no Instituto Internacional para Assuntos Estratégicos (IISS), em Londres.


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