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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Cartas de guerra


Sujas de lama ou manchadas de sangue, as correspondências reunidas por um colecionador descrevem o sofrimento e a morte nos campos de batalha


ANNICK COJEAN
DO "LE MONDE"

Ele é um jovem apressado que percorre o mundo em busca de cartas. Cartas de guerra, sejam quais forem seus autores.
Ele é um jovem apressado, convencido de que não existe testemunho mais precioso sobre a história dos povos do que a correspondência privada trocada entre pessoas queridas. Cartas para serem lidas na intimidade, mas que, por sua simplicidade, sua sinceridade, sua proximidade com o campo de batalha, o sofrimento e a morte, constituem, para ele, uma verdade autobiografia das nações.
Ele é um jovem apressado com quem conseguimos conversar durante uma breve parada em Paris, vindo do Leste Europeu, enquanto se preparava para partir para a Normandia e, em seguida, para Verdun, de onde deveria decolar para Bagdá e Cabul.
É um jovem apressado porque sua tarefa é urgente. Veteranos morrem a cada dia que passa; a cada dia, milhares de cartas são destruídas, queimadas ou rasgadas, e ""tesouros" correm o risco de ser perdidos para sempre. Por isso ele corre. Ele corre pedindo ajuda a museus, historiadores, instituições militares, associações de combatentes. E também aos jornais, já que estes divulgam seu apelo: não joguem nada fora.
Um dia a casa do jovem pegou fogo. Era véspera do Natal de 1989, em Washington. Ele tinha 19 anos na época. Nenhum membro de sua família se feriu. Mas todo o resto desapareceu num imenso braseiro: móveis, livros, roupas, fotos, lembranças de família, tudo. Inclusive as cartas.
Caixas inteiras de cartas. Cartas de colegas de escola; cartas de um amigo preso na tempestade dos acontecimentos da praça Tiananmen; cartas de amor, também. Andrew Carroll ficou arrasado. Ele garante que data desse momento sua paixão por cartas, e também aquilo que ele descreve como a sua missão: salvar cartas, juntá-las e compartilhá-las, publicando algumas delas.
Carroll não é amador nesse assunto. Em 1998 ele escreveu à coluna de cartas do leitor mais popular dos EUA, apelando aos leitores para que juntassem as correspondências de guerra que pudessem ter em sua posse. O resultado foi imediato: dezenas de milhares de cartas lhe chegaram de todas as partes do país. Eram cartas datando da Guerra de Secessão, das duas guerras mundiais, dos conflitos na Coréia, no Vietnã, no Golfo, na Somália e na Iugoslávia. Cartas manchadas de sangue, sujas de lama, às vezes trespassadas por uma bala.

Papel de carta de Hitler
Um soldado da Guerra de Secessão (1861-65) tinha sido obrigado a escrever com suco de amora, já que não dispunha de tinta. Outro soldado, instalado no apartamento de Hitler em 2 de maio de 1945, escrevera à sua mãe no papel de carta do Führer (morto dois dias antes), riscando o nome deste debaixo da águia com a suástica para substituí-lo pelo seu e lançando-se numa descrição pavorosa do campo de Dachau.
Nos envelopes contendo cartas ou as fotocópias de cartas, pequenos bilhetes manuscritos encorajavam Andrew Carroll em sua empreitada: ""Sou viúva, tenho 85 anos, meu marido e meu filho morreram. Meu marido serviu no 3º Exército de Patton. Não há mais ninguém a quem eu possa confiar suas cartas, portanto o senhor pode tê-las". Sem endereço de remetente. Jovens herdeiros e velhos isolados expressavam alívio por poderem enviar a alguém as cartas que eram preciosas para eles, mas com as quais não sabiam o que fazer.
Ficou claro que Andrew Carroll viera para preencher um vazio. Assim nasceu o Legacy Project (projeto legado). Carroll transformou as cartas em livro, "War Letters" (cartas de guerra), que virou best seller em 2002 e cujos direitos autorais, por sinal enormes, ele doou a museus e organizações de veteranos de guerra.
"Fiquei "viciado" na leitura dessas cartas", ele conta com paixão. "Passei dias e noites inteiras lendo. As cartas chegavam aos milhares, cada uma com sua história específica, revelando uma personalidade única, com humor, modéstia, poesia, senso de sacrifício, toda uma gama de sentimentos. As cartas humanizam a guerra, a concretizam. Elas expressam o desastre."
Entre as cartas que Andrew Carroll gosta de citar estão as missivas escritas por um certo George Bush. Sim, o ex-presidente, pai do presidente atual. Ansioso por fazer seu serviço militar, após o ataque japonês contra Pearl Harbor, o jovem de 18 anos se apresentara como voluntário para entrar na força aerotransportada: "Embora eu saiba que jamais poderei virar um matador", escreveu à sua mãe em 1942, "nunca vou me sentir à vontade enquanto eu não for ao combate. Sendo jovem o suficiente e estando em condições físicas para isso, preciso ir ao front, e o quanto antes, melhor." E ele foi enviado. "Oh, mamãe", escreve em 26 de junho de 1944, "espero que John e Buck [seus irmãos] e meus próprios filhos nunca precisem ir à guerra. Os amigos que morrem, as vidas devastadas. É terrível."
São inúmeras as histórias que transparecem nas cartas. Inúmeras as aventuras humanas que continuam após a guerra. "Como é errado acreditar, como nos livros de história, que um conflito começa num dia preciso e termina numa data X", afirma Andrew Carroll.
"As ondas de choque às vezes se estendem por dezenas de anos. Quantas feridas, quantas cicatrizes físicas e morais! Quantas tragédias provocadas por minas... Quantos divórcios, famílias separadas, personalidades destruídas!" Certas cartas escritas muito tempo após a guerra o interessam sobremaneira. É o caso de uma que um veterano da Guerra do Vietnã (1955-75) colocou, acompanhada de uma pequena foto, ao pé da grande parede de granito negro erguida em Washington em 1982 para homenagear os 58 mil soldados americanos mortos em combate.
"Prezado senhor,
Carreguei sua foto em minha carteira por 25 anos. Eu tinha apenas 18 anos no dia em que nos encontramos frente a frente no caminho de Chu Lai, no Vietnã. Nunca saberei por que você não tirou minha vida. Você me olhou fixamente por um longo tempo, com sua AK-47 fazendo mira sobre mim, mas não atirou. Perdoe-me por ter tirado sua vida, eu reagi como me ensinaram no treinamento; você nem sequer era considerado um ser humano, mas uma simples merda, um alvo. (...) Quantas vezes nesses anos todos eu olhei sua foto e a que acredito ser de sua filha! A cada vez meu coração e minhas tripas ardiam com a dor da culpa. (...) Deixo aqui sua foto e esta carta. É hora de eu seguir adiante com minha vida, de aliviar minha dor e minha culpa.
Me perdoe, senhor."
A carta foi observada e publicada, reavivando a dor do veterano. Ele decidiu, então, fazer todo o possível para entrar em contato com a família do soldado vietnamita de cujos pertences retirara as duas fotos. Elas foram publicadas nos jornais de Hanói. Milagrosamente, um jornal acabou na aldeia da família. Alguns dias mais tarde, o americano recebeu um fax de Lan, a filha do soldado morto. Ele então embarcou para o Vietnã para encontrá-la, pedir perdão, abraçá-la. E as duas fotos hoje descansam num pequeno altar erguido na casa da jovem vietnamita.
Enxergar o outro lado. Ouvir o lado oposto. Olhar desde outras perspectivas. Ampliar a visão. Ouvir todas as vozes, venham elas de onde vierem, sejam de quem forem. É essa a nova proposta do colecionador de cartas.
Que idéia é possível ter de um conflito quando se dá atenção apenas a um dos lados, quando se ouve apenas os combatentes, e não os combatidos? Quando se escuta apenas aqueles que atiraram as bombas, e não os civis que ficaram no meio dos destroços? Os ocupantes, e não os ocupados?
Num primeiro momento, Carroll teve medo da reação possível de antigos combatentes americanos. Mas foram justamente eles que o incentivaram: "Um dia, eu estava fazendo uma palestra numa pequena cidade conservadora da Carolina do Sul. De repente, um homem me perguntou: "E os inimigos, o que eles escreviam nessa época?". Respondi que eu não sabia. Então um veterano da Segunda Guerra falou: "Você deveria encontrar as cartas deles. Isso nos interessa. Faça um livro com elas. Eu nunca odiei as pessoas que devia matar!". Ele tinha razão. Não existe ódio nas cartas, a não ser pela própria guerra".

"Dor e sofrimento"
E Carroll cita o poeta americano Henry Wardsworth Longfellow: "Se pudéssemos ler a história secreta de nossos inimigos, encontraríamos na vida de cada homem dor e sofrimento suficientes para desarmar qualquer hostilidade". Vale mencionar que, 11 anos atrás, Carroll e o Prêmio Nobel Joseph Brodsky criaram uma fundação voltada à difusão da poesia na sociedade americana. Até hoje a fundação já distribuiu mais de 1 milhão de livros de poesia em trens, hotéis, mercados e escolas. Mas isso é outra história.
Carroll se muniu de uma máquina fotográfica, seu laptop, livros de história e alguns mapas, além de um roteiro preciso para otimizar seus contatos. Volgogrado (ex-Stalingrado) o deixou estarrecido: lá ele recuperou cartas narrando a violência inusitada do combate contra os alemães.
Em Berlim, alguns dias mais tarde, descobriu a existência da correspondência entre dois veteranos, um russo e o outro alemão, que participaram da célebre batalha. As cicatrizes de Dresden, que mal chegam a ser mencionadas nas aulas de história das escolas, o deixaram atônito, e ele procurou cartas das famílias presas sob as bombas americanas, em fevereiro de 1945. Varsóvia lhe trouxe algumas cartas dos resistentes do gueto, e em Belgrado ele encontrou e-mails escritos durante os bombardeios de 1999.

Iraque
Carroll precisa ir até o Iraque. Isso porque, depois de haver lido tanto sobre a guerra, ele precisa aproximar-se dela. É certo que conseguirá encontrar militares americanos e ter acesso às suas cartas, mas ele não nutre ilusões quanto às chances de obter escritos iraquianos. Para isso, conta com as famílias iraquianas radicadas nos EUA. Ele precisa ouvir essas vozes.
"É urgente que os EUA, que durante tanto tempo foram poupados da guerra em seu próprio território, se abram a outros pontos de vista, aceitem ouvir como são vistos de fora e como a guerra afeta as populações que a sofrem na pele." Carroll faz uma ressalva: "Meu objetivo não é político. Quero simplesmente que todos sintam um pouco da realidade atroz da guerra. Isso não quer dizer que eu seja um pacifista cego. Não vejo qual outra saída havia contra Hitler ou Milosevic. Mas, quando se decide travar a guerra, é preciso ter em mente a dimensão das reviravoltas e tragédias que vão resultar da decisão. E as cartas nos contam sobre isso, melhor do que ninguém".
Por isso, Carroll espera mais cartas. Aonde vai, ele dá o endereço de seu site: www.warlettersinternational.com, no qual constam os contatos e endereços de organismos nacionais em cada país que podem ser procurados pelos donos de cartas. É claro que ele gostaria de iniciar um movimento, um processo de conscientização. No fundo, por que não? Na primeira vez, após o célebre apelo que publicou nos Estados Unidos, a agência de correio local lhe telefonou, pedindo que Carroll passasse para buscar sua correspondência. "Vou pegar minha bicicleta e já chego aí", ele respondeu. "Seria melhor vir de carro", ouviu. Carroll precisou alugar um pequeno apartamento para guardar cerca de 70 mil cartas.
E agora, como será a reação a seu apelo na Rússia? Na Alemanha? No Japão? Na França? É esperar para ver.

Tradução de Clara Allain


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