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Obra proibida relata a grande fome chinesa
Jornalista reúne documentos oficiais sobre a industrialização forçada, que causou milhões de mortes entre 1959 e 1961
A fome levava chineses ao canibalismo, enquanto mídia estatal dizia que o país caminhava para ser uma potência, conta Yang
RAUL JUSTE LORES
DE PEQUIM
"Aos 18 anos de idade, eu só
comia arroz. Não tinha outro
vegetal, nem carne, nem óleo,
só arroz o dia inteiro. Meu pai
morreu de fome esse ano, assim
como outros conhecidos. Mas
achávamos que fossem casos
isolados, o controle da informação na China era total."
O jornalista Yang Jisheng,
67, passou os últimos 20 anos
tentando desvendar o porquê
das 36 milhões de mortes que
aconteceram entre 1959 e 1961,
até hoje um dos maiores tabus
do Partido Comunista Chinês.
Yang acaba de publicar "Mu
Bei" (lápide). Em 1.100 páginas,
dividas em dois volumes, ele
descreve a chamada "grande fome" com centenas de fontes e
cópias de documentos oficiais.
Conta casos de canibalismo
-de famílias que devoravam
cadáveres de parentes a pais
que mataram seus filhos para
se alimentar de seus corpos.
Houve casos de cadáveres
mantidos por familiares na cama, que diziam às autoridades
"ali está o primo doente" para
poder continuar a receber a ração de arroz do defunto. O autor ouviu sobreviventes admitirem ter comido cães e ratos e dá
detalhes de como o governo
conseguiu esconder a tragédia.
A fome foi provocada por
uma desastrada campanha do
ditador Mao Tse-tung. Chamada de "Grande Salto Adiante",
ela tirou milhões de camponeses da lavoura para tentar industrializar a China à força.
Enquanto fundiam ferro, a
produção agrícola minguava.
Em 1959, a União Soviética
rompeu unilateralmente com o
regime comunista chinês. Mao
começou a pagar suas dívidas
com os soviéticos com comida.
Milhões de grãos de uma produção em declínio foram desviadas para o vizinho do norte.
"Havia armazéns cheios de
grãos, mas houve poucos saques. As pessoas morriam sem
saber o que fazer. Rádios e jornais, todos do governo, diziam
que o país caminhava para ser
uma potência. Ninguém tinha
coragem de criticar o governo,
após temporadas de expurgos",
disse Yang à Folha.
Socorro proibido
Em Xinyang, cidade na Província de Henan, cerca de 10
mil cartas de pessoas pedindo
ajuda a parentes foram retidas
no correio local. Até líderes comunistas locais eram proibidos
de pedir socorro.
Na cidade, em 1958, 1,2 milhão de pessoas, um terço da
mão de obra, foi escalada para
fazer aço. A produção de grãos
ali caiu 46,1% em um ano. Mas
o governo local disse que a produção de grãos dobrou. "Prefeitos e governos provinciais maquiavam os números para impressionar Pequim, e o governo
nacional supostamente não sabia o que acontecia", diz Yang.
Mais tarde, com centenas de
cadáveres em qualquer vilarejo, o governo começou a atribuir a grande fome a "três anos
de desastres naturais". "Médicos me contaram que, ao visitar
pacientes, queriam dizer que o
único remédio era comida, mas
nem eles tinham coragem de
falar a verdade", diz Yang.
Ali, testemunhas relataram
que era comum se alimentar de
fezes de cervo, "menos grudentas que as de outros animais".
Acesso privilegiado
Membro do PC, Yang trabalhou na agência estatal de notícias Xinhua entre 1966 e 2001,
quando se aposentou. Ele passou pelos vários estágios do comunismo local: perdeu o pai,
conseguiu estudar na prestigiada universidade Tsinghua, em
Pequim, mas foi mandado para
um campo agrícola no final dos
anos 60, durante a Revolução
Cultural, quando intelectuais e
"trabalhadores burgueses" tinham de pegar na enxada.
Como jornalista da Xinhua,
Yang conseguiu ter acesso a documentos oficiais e falar com
autoridades que se negariam a
tocar no assunto em outra situação: "Ninguém desmentiu
minha pesquisa. Os números
oficiais que obtive mostram
que a população decresceu em
10 milhões em 1960, algo inédito na China de então".
Não só pelas mortes, mas pela queda de nascimentos. "Mulheres paravam de menstruar e
a atividade sexual caiu", diz.
"Lápide" foi publicado por
uma editora de Hong Kong e
está proibido na China. Mas há
dezenas de sites com o conteúdo completo para download.
Com erros propositais na digitação do nome do autor e da
obra, eles têm driblado o bloqueio da censura chinesa.
"Não há liberdade jornalística na China, mas ninguém pára
a internet", diz Yang.
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