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Caso dos "falsos positivos"
persegue Uribe
Mesmo após destituição de 27 militares, sobe número de militares investigados por cooptar e matar jovens, inflando cifra do combate às Farc
Mãe da periferia de Bogotá conta busca pelo cadáver do filho assassinado em troca de recompensa e depois acusado de ser da guerrilha
MAURÍCIO MORAES
EM BOGOTÁ
No dia 8 de fevereiro de
2008, o colombiano Jaime Steven, 16, ligou para sua casa em
Soacha, a uma hora de Bogotá.
Com a voz sussurrada, contou
rapidamente à irmã que estava
em Ocaña, próximo à divisa
com a Venezuela. Steven desaparecera havia dois dias, deixando a mãe em desespero.
Apesar da chamada, só foi encontrado sete meses depois,
morto, numa vala comum.
Oficialmente, Steven era um
membro das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assassinado numa batalha com o Exército. Mas os fatos acabaram por mostrar que
ele é mais um dos cerca de
1.500 "falsos positivos" -muitos garotos pobres cooptados e
mortos por soldados que, em
busca de recompensa e promoção, forjavam enfrentamentos
com a guerrilha e baixas.
O escândalo estourou em outubro passado e segue sendo
um calcanhar-de-aquiles do
presidente Álvaro Uribe, dado
o volume cada vez maior de soldados arrolados nas investigações no Ministério Público. No
fim de janeiro, já eram 1.500.
Se casos do tipo já eram denunciados por ONGs há vários
anos, o assassinato de Steven e
outros dez rapazes de Soacha
detonou o surgimento de relatos em vários pontos do país e
acendeu a luz amarela em relação à exitosa política de "segurança democrática" de Uribe, a
ofensiva militar que acossou
como nunca as Farc e deu a ele
recordes de popularidade.
María Sanabria, 50, seguiu
buscando o filho Steven desde o
telefonema. Na casa em que vive com 3 dos 8 filhos em Soacha, uma cidade-dormitório
paupérrima de 400 mil habitantes, ela conta que em 28 de
setembro foi mais uma vez ao
Instituto Médico Legal, quando surgiram na imprensa as
primeiras suspeitas. Foi a filha
quem, no dia seguinte, o identificou. "Fui então ver as fotos. Vi
que o haviam torturado porque
tinha a testa inchada. Bateram
muito nele", chora ela.
No centro de Bogotá, a poucas quadras da Casa de Nariño,
o palácio presidencial, o ex-deputado Jairo Ramírez, presidente do Movimento Nacional
de Vítimas, diz que as organizações de Direitos Humanos da
Colômbia contabilizam cerca
de 1.500 casos como o de Steven. "O governo mede o desempenho [das Forças Amadas] pela quantidade de mortos. É uma
prática macabra."
Civis estariam fazendo falsas
denúncias, ligando pessoas à
guerrilha, em busca de recompensa: "Em [departamento de]
Arauca, o presidente do Comitê
de Direitos Humanos foi preso
porque foi denunciado como
sendo ligado às Farc", diz.
Ramírez anda de carro blindado, com proteção policial,
após receber ameaças de paramilitares -apesar da desmobilização negociada pelo governo
em 2005, há remanescentes
deles e novos grupos, que dividem com as Farc o comando do
tráfico. Uma investigação sobre
a vinculação dos "paras" com
políticos já levou à prisão de
mais de 30 congressistas, a
maioria governista.
Fernando Escobar, representante do Ministério Público
em Soacha, também está sob
ameaça de morte desde que liderou as denúncias dos "falsos
positivos". "Me acusam de ser
inimigo de Uribe, do Exército,
de colaborar com a guerrilha."
Reação e medidas
A primeira reação de Uribe
ao escândalo foi defender os
militares, dizer que os rapazes
achados em Ocaña eram delinquentes -nenhum tinha grave
delito nas fichas policiais.
Mas o caso cresceu e o Ministério da Defesa abriu investigação interna. Pressionado, o comandante do Exército, general
Mario Montoya renunciou.
Outros 27 -entre eles três generais- foram destituídos.
O ministro da Defesa, Juan
Manuel Santos, citado como
presidenciável em 2010, baixou
um manual com "regras para o
enfrentamento" e estabeleceu
exigência de bom histórico na
matéria para promoções. Bogotá reconheceu o caso em dezembro, no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
O cuidado com o tema -praticamente sem reflexo na aprovação do governo- é redobrado quando Uribe está em campanha para convencer a Casa
Branca de Barack Obama e o
Congresso de maioria democrata a manter a ajuda milionária que os EUA transferem à
Colômbia para o combate ao
narcotráfico e à guerrilha. Após
visitar o Brasil, a partir de amanhã, acompanhando o presidente Uribe, o chanceler Jaime
Bermúdez vai a Washington
iniciar a ofensiva diplomática.
Santos integrará a missão.
Saga de horror
O enredo de horror da mãe
de Steven não acabou com a
confirmação da morte. María,
que trabalha para a Cruz Vermelha, viajou a Ocaña. "O mais
terrível foi quando o tiraram da
cova, numa bolsa preta. Nunca
vou apagar isso da memória."
Sem dinheiro para o translado, voltou sozinha a Soacha.
Levaria dois meses até levantar
fundos para o funeral. Em novembro, o corpo de Steven foi
finalmente enterrado.
As medalhas de atletismo e
natação do garoto seguem penduradas na casa. María diz não
confiar na Justiça, tampouco
diz ter medo de represálias por
denunciar o caso. "Levaram-no
direto ao matadouro."
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