São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009

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Caso dos "falsos positivos"
persegue Uribe

Mesmo após destituição de 27 militares, sobe número de militares investigados por cooptar e matar jovens, inflando cifra do combate às Farc

Mãe da periferia de Bogotá conta busca pelo cadáver do filho assassinado em troca de recompensa e depois acusado de ser da guerrilha


MAURÍCIO MORAES
EM BOGOTÁ

No dia 8 de fevereiro de 2008, o colombiano Jaime Steven, 16, ligou para sua casa em Soacha, a uma hora de Bogotá. Com a voz sussurrada, contou rapidamente à irmã que estava em Ocaña, próximo à divisa com a Venezuela. Steven desaparecera havia dois dias, deixando a mãe em desespero. Apesar da chamada, só foi encontrado sete meses depois, morto, numa vala comum.
Oficialmente, Steven era um membro das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assassinado numa batalha com o Exército. Mas os fatos acabaram por mostrar que ele é mais um dos cerca de 1.500 "falsos positivos" -muitos garotos pobres cooptados e mortos por soldados que, em busca de recompensa e promoção, forjavam enfrentamentos com a guerrilha e baixas.
O escândalo estourou em outubro passado e segue sendo um calcanhar-de-aquiles do presidente Álvaro Uribe, dado o volume cada vez maior de soldados arrolados nas investigações no Ministério Público. No fim de janeiro, já eram 1.500.
Se casos do tipo já eram denunciados por ONGs há vários anos, o assassinato de Steven e outros dez rapazes de Soacha detonou o surgimento de relatos em vários pontos do país e acendeu a luz amarela em relação à exitosa política de "segurança democrática" de Uribe, a ofensiva militar que acossou como nunca as Farc e deu a ele recordes de popularidade.
María Sanabria, 50, seguiu buscando o filho Steven desde o telefonema. Na casa em que vive com 3 dos 8 filhos em Soacha, uma cidade-dormitório paupérrima de 400 mil habitantes, ela conta que em 28 de setembro foi mais uma vez ao Instituto Médico Legal, quando surgiram na imprensa as primeiras suspeitas. Foi a filha quem, no dia seguinte, o identificou. "Fui então ver as fotos. Vi que o haviam torturado porque tinha a testa inchada. Bateram muito nele", chora ela.
No centro de Bogotá, a poucas quadras da Casa de Nariño, o palácio presidencial, o ex-deputado Jairo Ramírez, presidente do Movimento Nacional de Vítimas, diz que as organizações de Direitos Humanos da Colômbia contabilizam cerca de 1.500 casos como o de Steven. "O governo mede o desempenho [das Forças Amadas] pela quantidade de mortos. É uma prática macabra."
Civis estariam fazendo falsas denúncias, ligando pessoas à guerrilha, em busca de recompensa: "Em [departamento de] Arauca, o presidente do Comitê de Direitos Humanos foi preso porque foi denunciado como sendo ligado às Farc", diz.
Ramírez anda de carro blindado, com proteção policial, após receber ameaças de paramilitares -apesar da desmobilização negociada pelo governo em 2005, há remanescentes deles e novos grupos, que dividem com as Farc o comando do tráfico. Uma investigação sobre a vinculação dos "paras" com políticos já levou à prisão de mais de 30 congressistas, a maioria governista.
Fernando Escobar, representante do Ministério Público em Soacha, também está sob ameaça de morte desde que liderou as denúncias dos "falsos positivos". "Me acusam de ser inimigo de Uribe, do Exército, de colaborar com a guerrilha."

Reação e medidas
A primeira reação de Uribe ao escândalo foi defender os militares, dizer que os rapazes achados em Ocaña eram delinquentes -nenhum tinha grave delito nas fichas policiais.
Mas o caso cresceu e o Ministério da Defesa abriu investigação interna. Pressionado, o comandante do Exército, general Mario Montoya renunciou. Outros 27 -entre eles três generais- foram destituídos.
O ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, citado como presidenciável em 2010, baixou um manual com "regras para o enfrentamento" e estabeleceu exigência de bom histórico na matéria para promoções. Bogotá reconheceu o caso em dezembro, no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
O cuidado com o tema -praticamente sem reflexo na aprovação do governo- é redobrado quando Uribe está em campanha para convencer a Casa Branca de Barack Obama e o Congresso de maioria democrata a manter a ajuda milionária que os EUA transferem à Colômbia para o combate ao narcotráfico e à guerrilha. Após visitar o Brasil, a partir de amanhã, acompanhando o presidente Uribe, o chanceler Jaime Bermúdez vai a Washington iniciar a ofensiva diplomática. Santos integrará a missão.

Saga de horror
O enredo de horror da mãe de Steven não acabou com a confirmação da morte. María, que trabalha para a Cruz Vermelha, viajou a Ocaña. "O mais terrível foi quando o tiraram da cova, numa bolsa preta. Nunca vou apagar isso da memória."
Sem dinheiro para o translado, voltou sozinha a Soacha. Levaria dois meses até levantar fundos para o funeral. Em novembro, o corpo de Steven foi finalmente enterrado.
As medalhas de atletismo e natação do garoto seguem penduradas na casa. María diz não confiar na Justiça, tampouco diz ter medo de represálias por denunciar o caso. "Levaram-no direto ao matadouro."


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