São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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A RÚSSIA DE PUTIN

Para o ministro da Defesa da Rússia, cotado para suceder a Putin, ataques preventivos antiterror são um direito

Defender tchetchenos é hipócrita, diz Ivanov

Pawel Kopczynski - 9.mai.2005/Reuters
Em Moscou, o ministro da Defesa da Rússia, Serguei Ivanov, em pé numa limusine, passa revista às tropas na parada militar que celebrou os 60 anos da vitória dos soviéticos sobre a Alemanha nazista


MÁRCIO SENNE DE MORAES
ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

Defender "terroristas tchetchenos" é "uma hipocrisia e uma falta de desejo de reconhecer o óbvio. Esta não está relacionada com a incompreensão, mas com razões políticas muito mais sérias".
A afirmação é de Serguei Ivanov, ministro da Defesa da Rússia, considerado um dos homens mais influentes do governo de Vladimir Putin e um forte candidato à sua sucessão, em 2008.
Ele defende o direito russo de desferir ataques preventivos em sua guerra ao terrorismo, afirma que o Brasil tem boas chances de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU -"se ele for expandido"- e justifica, por não desrespeitar normas internacionais, o apoio nuclear dado pela Rússia ao Irã.
Contudo Ivanov não respondeu especificamente à questão formulada sobre a controversa venda de armas da Rússia à Venezuela de Hugo Chávez, que tem incomodado a diplomacia americana.
Leia trechos da entrevista, por escrito, de Ivanov à Folha.

Folha - Como a Rússia conjuga a necessidade de impedir a proliferação nuclear e sua cooperação com o Irã na usina de Bushehr, que preocupa os EUA e a Europa?
Serguei Ivanov -
Começo minha resposta lembrando que a Rússia sempre defendeu a necessidade de todos os Estados observarem rigorosamente os tratados assinados e as normas do direito internacional. Essa é nossa posição sobre nosso desejo de desenvolver a colaboração com o Irã.
Quanto à preocupação e às críticas dos representantes de algumas potências mundiais sobre possíveis aspectos ilegais das relações russo-iranianas, está claro que a tensão em torno disso vem diminuindo nos últimos tempos.
Penso que todos já tenham compreendido que a atitude da Rússia, incluindo a construção da central nuclear de Bushehr, está dirigida exclusivamente para melhorar as relações político-comerciais com o Irã. Ela não fere nossas obrigações internacionais. Essa colaboração ocorre sob o estrito controle de órgãos globais, incluindo a Agência Internacional de Energia Atômica.
Além disso, já deixamos claro que, depois de terminar a construção da central de Bushehr, o fornecimento de combustível nuclear só será feito se os resíduos forem devolvidos. Gostaria de assegurar que esse projeto, puramente comercial, exclui a possibilidade de as tecnologias russas serem usadas para fins militares.
Seria ingênuo pensar que se trate de um "jogo duplo". Afinal, a Rússia está mais interessada que os EUA ou a Europa em não permitir o surgimento, perto da sua fronteira meridional, de um Estado com potencial nuclear bélico.

Folha - Como o sr. analisa as críticas do governo americano à venda de armamentos russos à Venezuela e à Síria e à situação da democracia na Rússia? Os EUA são parceiros ou rivais atualmente?
Ivanov -
Sem dúvida, as relações entre a Rússia e os EUA podem, hoje em dia, ser caracterizadas como uma parceria. Elas têm boas perspetivas futuras por se basearem no interesse mútuo de procurar caminhos ou meios para aumentar a eficiência da colaboração em muitos áreas, incluindo a militar. A experiência da colaboração mostra que há uma base segura para o sucesso. Antes de tudo, existe a confiança.

Folha - Como a Coréia do Norte deve ser tratada pela comunidade internacional?
Ivanov -
A Rússia aprova a vontade da Coréia do Norte de renovar sua participação nas negociações de seis participantes [Coréias do Norte e do Sul, Japão, China, EUA e Rússia] para regular seu programa nuclear. Continuamos considerando que as negociações são o caminho mais curto para a península de Coréia se tornar uma zona desnuclearizada.
Para a Rússia, isso é mais importante ainda porque a Coréia do Norte é um país vizinho. Para nós, é inaceitável a via da "pressão" porque isso poderá provocar um conflito regional.

Folha - O que o sr. pensa sobre a reforma da ONU, a expansão de seu Conselho de Segurança (CS) e a intenção do Brasil de obter um assento permanente no órgão?
Ivanov -
A Rússia aprova a reforma da ONU, pois é preciso levar em consideração as realidades do mundo atual. No entanto não é possível violar os princípios fundamentais de seu funcionamento. Os objetivos principais de seu aperfeiçoamento devem ser os aspectos humanitários e os esforços para atingir a paz mundial. Quanto à questão de o Brasil tornar-se membro permanente do CS, é obvio que o país tem um chance real se o órgão for expandido.

Folha - De que modo a Rússia pretende contribuir para a chegada a um acordo de paz duradouro entre israelenses e palestinos?
Ivanov -
Agora há novas possibilidades de atingir a paz entre israelenses e palestinos e esperança de pôr fim à violência e de garantir a aplicação dos acordos entre Israel e a Autoridade Nacional Palestina [ANP] se ambas as partes cumprirem as condições impostas pelo mapa do caminho.
Os resultados das eleições do chefe da ANP em 9 de janeiro podem ser avaliados, em termos gerais, como positivos. Eles permitem começar a realizar as reformas democráticas. Mais ainda, começou o processo político para renovar os Legislativos locais. Isso corresponde plenamente aos interesses de Israel. Ademais, teve uma grande importância o monitoramento internacional da organização e da realização das eleições, do qual a Rússia participou.
O presidente da ANP, Mahmoud Abbas, vem tomando providências para estabilizar a situação de Gaza politicamente. Para tanto, ele estabeleceu contatos com líderes extremistas e os convenceu a parar, por enquanto, a luta armada contra os israelenses. Como resultado, eles praticamente deixaram de atirar contra colônias judaicas, e os propósitos das autoridades palestinas são bem-aceitos pelos israelenses.
A Rússia quer continuar a desempenhar ativamente o papel de intermediária na resolução dos problemas do Oriente Médio.

Folha - Que tipo de ameaça o terror internacional representa para a Rússia? Não é exagerado classificar todos os rebeldes tchetchenos de terroristas internacionais?
Ivanov -
Ninguém tem dúvida hoje de que o terror internacional é o maior perigo para a civilização mundial. A Rússia nunca negociou com terroristas nem tenciona fazê-lo no futuro. Cremos que o mal deva ser punido. Aos atos de terror internacional que contradizem às normas todas da moral e do direito é preciso responder de modo rápido e adequado.
Todavia qualquer ação dos Estados e das organizações internacionais contra os terroristas, mesmo que seja dura, deve basear-se em normas e princípios do direito internacional, além de ser adequada e refletida. Isso inclui a realização de ataques antiterroristas preventivos. A Rússia não é o único país que anunciou que poderá tomar essa medida. Ademais, somos testemunhas de que ataques terroristas continuam a ocorrer no Afeganistão e no Iraque.
Sabemos que, após os acontecimentos trágicos de Beslan, o CS da ONU, em sua resolução 1566, exortou de novo os Estados a usar todos os meios possíveis para impedir atos terroristas criminosos. É por isso que a Rússia, respeitando o direito internacional bem como os padrões internacionais dos direitos humanos, admite a possibilidade de realizar ataques preventivos em qualquer ponto do qual possa vir o perigo do terrorismo.
As Forças Armadas da Rússia têm as possibilidades e os meios necessários. E armas de alta precisão. Quanto à segunda parte de sua pergunta, em minha opinião, não há separatistas na Tchetchênia atual.
Ali age um pequeno grupo de pessoas que escolheu, há muito tempo, o caminho do terrorismo e que tem relações múltiplas: financeiras, políticas, operacionais etc. Só durante sua operação antiterrorista, as unidades do Ministério da Defesa exterminaram, na Tchetchênia, representantes de mais de 40 países do mundo. Isso é, na verdade, um fato.
Eles não são separatistas, mas terroristas. E essas pessoas que semeiam a morte são um instrumento estúpido e inumano nas mãos de outras pessoas que têm o propósito de espalhar, na Rússia, o caos e o pânico, além de provocar nervosismo e questionar a unidade do Estado. Eles tencionam usar as diferenças e os conflitos entre as etnias e atacam buscando atingir os pontos mais dolorosos e sensíveis. Não posso deixar de chamá-los de terroristas.
Mas conheço bem a posição de alguns defensores dos direitos humanos ocidentais que acham que só um tribunal seja capaz de decidir se uma pessoa é um terrorista. Porém Osama bin Laden foi julgado? Não, não foi. E como é classificado? Ora, ele classificado indubitavelmente de terrorista. E concordo com essa classificação.
Mas por que, então, Bin Laden ou o mulá Omar [líder espiritual do Taleban] são terroristas e [Shamil] Basayev [líder tchetcheno] é um rebelde que luta pela liberdade? Acho isso uma hipocrisia e uma falta de desejo de reconhecer o óbvio. Esta não está relacionada com a incompreensão, mas com razões políticas muito mais sérias.

Folha - Qual é o interesse geopolítico da Rússia na América Latina, sobretudo no Brasil, visto que as relações entre ambos os países têm-se intensificado?
Ivanov -
Por razões óbvias, a Rússia é um país de interesses internacionais amplos e variados. Nossos parceiros são uma grande quantidade de países de todo o mundo, inclusive da América Latina. Ultimamente, decidimos nos esforçar para desenvolver nossas relações políticas e comerciais com os países dessa região, que é um dos centros de maiores perspectivas do mundo multipolar que está nascendo.
Como ministro da Defesa, creio que os países latino-americanos possam também tornar-se para a Rússia parceiros na área da colaboração técnico-militar.
A Rússia já tem acordos de colaboração técnico-militar com nove países da América Latina, três dos quais -a Argentina, o Peru e o Chile- assinados em 2004. Queremos incrementar nossas relações de várias formas. Primeiro, ampliando os contatos com as autoridades político-militares mais graduadas dos países da região.
Segundo, incentivando o interesse dos países da região em colaborar com a Rússia ao fazer propostas competitivas de armas e de material bélico em condições mais favoráveis que as de outros países exportadores. Terceiro, participando da modernização das capacidades de fabricação de material bélico desses países, vendendo-lhes licenças para produzir armamentos russos e ajudando-os a organizar sua produção.
E, finalmente, aumentando a colaboração na realização de projetos de tecnologias de ponta, incluindo a pesquisa espacial, o monitoramento do ambiente e a concepção de material bélico.
Sobre as relações russo-brasileiras, nossos países estabeleceram relações diplomáticas em 3 de outubro de 1828. No final do século 19, o Brasil era o único país da região com o qual a Rússia mantinha relações comerciais.
Nossos países têm muito em comum. Temos territórios enormes, características sociológicas similares, níveis parecidos de desenvolvimento econômico, além de muito prestígio na cena internacional. Estou convencido de que, com o esforço mútuo, seremos capazes de levar nossa colaboração a um nível novo e de que nos tornaremos parceiros.
As premissas que compartilhamos impressionam. Trata-se de posições próximas ou iguais sobre a maioria dos problemas internacionais. Nossos países aprovam o aprofundamento das iniciativas de desarmamento, colaboram no combate à propagação de armas de destruição em massa e fazem tudo para criar as condições necessárias para o desenvolvimento sustentável do mundo e para fazer a globalização tornar-se um processo "humano".
Podemos ser parceiros na luta contra o terrorismo. Esse campo de nossa colaboração poderá também tornar-se importante no que se refere às autoridades militares. A declaração interestatal de luta contra o terrorismo assinada em 2003 é uma prova de que compartilhamos idéias sobre como resolver esse problema.
Em abril de 2002, em Moscou, nossos países assinaram o memorando da colaboração na esfera das tecnologias militares, e, em novembro de 2004, durante a visita oficial do presidente Vladimir Putin ao Brasil, houve acordos para incrementar a colaboração técnico-militar bilateral.
A Rússia compreende muito bem o desejo das autoridades político-militares do Brasil de aumentar o nível de preparação de suas Forças Armadas e de aperfeiçoar o estado técnico de seus armamentos. Estamos dispostos a fornecer as mais modernas amostras de material bélico nos limites dos programas já existentes.

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