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São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

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ANÁLISE

Prisão do ex-ditador dá alento a abertura árabe

SÉRGIO MALBERGIER
EDITOR DE MUNDO

A captura de Saddam Hussein é uma ótima notícia para a campanha de reeleição de George W. Bush, mas, potencialmente, pode ser ainda melhor para os iraquianos e os árabes em geral.
O mais sangrento ditador árabe deve terminar seus dias preso, pagando pelos crimes hediondos que cometeu -um poderoso estimulante para as ainda tímidas forças democráticas árabes.
Ele foi um dos piores ditadores da história recente -há estimativas de que seu regime possa ter matado mais de 1 milhão.
Sua prisão esvazia o mito do temível ditador. Durante seu regime, era difícil conseguir nas ruas de Bagdá uma opinião sobre Saddam, por causa do medo de represálias que apenas o som de seu nome causava. Ao ver as imagens humilhantes de sua prisão os iraquianos não temerão mais o espectro da volta do ditador.
Mas o maior benefício da prisão de Saddam pode ser um reforço do tímido movimento de abertura no mundo árabe. Dos 22 países-membros da Liga Árabe, não há uma democracia sequer. E ditadores árabes só deixam o poder quando morrem ou são derrubados à bala. Praticamente nenhum vai a julgamento por seus crimes.
Apesar do inútil derramamento de sangue no conflito com o Irã, das derrotas militares humilhantes em 1991 e neste ano, apesar do também humilhante regime de sanções de 1990 até a queda do regime, em abril último, Saddam mantinha fama entre setores árabes de bravo guerreiro por resistir e desafiar os odiados americanos.
No início da guerra deste ano, a difusão triunfal pelas redes de TV pan-árabes de notícias como a Al Jazira de alguns sucessos iniciais das forças iraquianas contra as tropas invasoras levou ao fortalecimento na rua árabe do mito de que Saddam era o único líder entre eles capaz de enfrentar os americanos (sem contar o terrorista saudita Osama bin Laden). Não que os árabes não conhecessem os crimes do iraquiano, que gostava de se comparar a Saladino, o líder islâmico (curdo) que expulsou os cruzados de Jerusalém.
Mas a lógica era a de que os EUA imperiais eram ainda piores que Saddam, por sua política hegemônica numa região profundamente marcada pelos equívocos dos impérios coloniais, apoiando as ditaduras árabes e, principalmente, o demonizado Israel.
Seria muito melhor se Saddam tivesse sido deposto, capturado e julgado por iraquianos ou árabes. Que Saddam agora seja julgado publicamente por seus conterrâneos iraquianos que tanto sofreram sob seu regime sanguinário.
Esse histórico julgamento seria uma poderosa arma para conscientizar os árabes de que, por pior que sejam hoje as políticas de EUA e Israel, e por mais que sofram os efeitos devastadores da colonização e das alianças espúrias entre potências estrangeiras e ditaduras locais, seus problemas são fruto principalmente do total desarranjo e da injustiça que permeiam suas sociedades autoritárias e que seu atraso em relação a outras partes do mundo é fruto desse estado de coisas, não de ações de forças externas.


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