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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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Autor de "Guerras Justas e Injustas" diz que ataque é evitável, mas que é preciso conter Saddam, ainda que pela força

Discurso pacifista é negativo, diz analista

OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO

As manifestações deste final de semana contra uma eventual guerra no Iraque transmitirão uma mensagem negativa se tiverem um caráter simplesmente pacifista, porque o ditador iraquiano, Saddam Hussein, representa uma ameaça à paz mundial e precisa ser contido, inclusive com a ameaça de uso da força militar.
É o que diz o professor americano Michael Walzer, 67, autor de "Guerras Justas e Injustas" (1977), livro de referência para estudiosos dos conflitos militares por fazer uma análise rigorosa, a partir de exemplos históricos, de suas justificativas, limites, excessos e consequências.
Para Walzer, existem alternativas para evitar uma guerra no Iraque e, portanto, ela deve ser evitada. "É uma mensagem difícil, mas as manifestações deveriam defender um sistema permanente de contenção do Iraque", afirmou Walzer, em entrevista à Folha.
Para garantir seu sucesso, esse sistema de contenção do Iraque precisaria estar apoiado numa intenção clara de uso da força militar, pois Saddam já mostrou, nos anos 90, que não pretende cumprir as resoluções da ONU que exigem seu desarmamento.
Walzer é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados, organização independente sediada em Princeton (Nova Jersey, Costa Leste dos EUA). Autor de mais de 20 livros, edita a revista Dissent (www.dissentmagazine.org), de intelectuais de esquerda.

Folha - Neste final de semana, estão ocorrendo manifestações contra uma eventual guerra no Iraque em todo o mundo. Qual é a sua opinião sobre a mensagem pacifista?
Michael Walzer -
O pacifismo é uma mensagem ruim, porque não acredito que as inspeções da ONU possam funcionar -e presumo que os manifestantes querem que elas funcionem- sem a ameaça de uso da força. Se queremos evitar a guerra, temos de estar dispostos a usar a força contra Saddam Hussein. Embora seja uma mensagem difícil, as manifestações deveriam defender um sistema permanente de contenção do Iraque, que dure enquanto durar o atual regime iraquiano.

Folha - Se o Iraque deve ser contido, por que o sr. é contra a guerra?
Walzer -
O regime iraquiano é uma tirania cruel, que tem tentado desenvolver armas de destruição em massa e representa uma ameaça a seus vizinhos e à paz mundial. Mas, enquanto for possível manter de pé e funcionando um conjunto de medidas que controle o regime, acho errado iniciar uma guerra. Se ela pode ser evitada, deve ser evitada.

Folha - Que conjunto de medidas seria esse que, na sua visão, poderia ser uma alternativa à guerra?
Walzer -
Um embargo aperfeiçoado, a extensão das zonas de exclusão para aviões iraquianos e um sistema de inspeções muito forte, apoiado por tropas internacionais. O embargo deveria ser baseado em sanções inteligentes, que permitam a entrada de produtos necessários à população civil, mas impeçam a compra de suprimentos e de tecnologia militares. Quanto às zonas de exclusão aérea, elas deveriam ser ampliadas para todo o território iraquiano, com participação de países europeus em seu monitoramento. As inspeções precisariam estar sustentadas por uma ameaça concreta de uso da força, com a presença de soldados da ONU no Iraque. Só uma ação multilateral forte pode impedir que o governo Bush lance um ataque unilateral.

Folha - França e Alemanha apresentaram propostas semelhantes nos últimos dias. Mas há um paradoxo. Durante 12 anos, o Iraque fez o que pôde para bloquear as inspeções. E França, Rússia e China, membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, em vez de reforçarem as inspeções, sugeriram que o embargo fosse levantado antes que o desarmamento fosse comprovado. Agora, diante da ameaça bem concreta de um ataque americano, os três países acima propõe o fortalecimento das inspeções. Não é contraditório?
Walzer -
O colapso das inspeções foi um desastre para a ONU e, embora a administração Clinton seja em parte responsável, França e Rússia são as maiores responsáveis. Os franceses e os russos foram os principais parceiros comerciais do Iraque durante os anos 90 e adotaram uma política de conciliação com o regime de Saddam. Por isso, é difícil levar suas propostas atuais a sério. O momento certo para usar a força contra o Iraque teria sido em 1998, quando Saddam estava claramente obstruindo as inspeções. Deveria ter sido uma guerra da ONU, para fazer cumprir suas resoluções, e não uma guerra americana. Agora, é preciso agir para recriar um sistema de inspeções forte, que esteja baseado numa intenção clara de uso da força militar para garantir seu sucesso. E a ameaça não deve ser apenas americana ou britânica. França, Rússia e China precisam se juntar.

Folha - Essa combinação de medidas teria importantes efeitos colaterais. O embargo, por exemplo, tem tido resultados devastadores para os civis. Não seria preferível derrubar Saddam?
Walzer -
Uma guerra curta poderia ser preferível a um sistema permanente de contenção do Iraque. Mas ninguém pode garantir que ela será curta.

Folha - Na primeira Guerra do Golfo, não houve grande resistência por parte das forças iraquianas.
Walzer -
Sim, mas a primeira guerra não foi lutada no Iraque e sim no Kuait. Se uma única divisão de guardas republicanos decidir defender Bagdá, poderá haver um banho de sangue.

Folha - Quando os EUA decidiram atacar o Afeganistão, em 2001, também havia o temor de que a guerra fosse longa e sangrenta. Houve mortos, mas o Taleban [milícia extremista islâmica que governava o país" caiu rapidamente.
Walzer -
É verdade. Mas é preciso verificar quais são as alternativas e quais são os riscos. No caso do Iraque, há alternativas, o que não acontecia no caso do Afeganistão. E os riscos me parecem maiores. Provavelmente não participarei dos atos pacifistas, mas, neste momento, creio ser melhor tentar evitar uma guerra.

Folha - Seu livro mais famoso, "Guerras Justas e Injustas", foi publicado em 1977 e é uma referência. Quais seriam os princípios de uma guerra justa 25 anos depois?
Walzer -
Não mudaram muito. O paradigma de uma guerra justa é o princípio da autodefesa. Uma ação militar também é justa se for para ajudar alguém que está se defendendo. A terceira justificativa é uma guerra com fins humanitários. No século 20, diversas vezes nos vimos diante de Estados que empreendiam assassinatos em massa, genocídios, limpezas étnicas. Crimes contra a humanidade têm de ser impedidos ainda que seja necessário usar a força. Foi o caso da Guerra de Kosovo (1999).

Folha - E como essa teoria se ajusta à guerra contra o terrorismo?
Walzer -
A expressão "guerra contra o terrorismo" pode incluir uma guerra no momento, a do Afeganistão, mas é acima de tudo uma questão de polícia. Agora, se o governo de um Estado não está apenas protegendo terroristas, mas está em parceria com grupos terroristas, esse Estado pode ser justamente atacado. O Afeganistão era um exemplo claro. Não acho que seja o caso do Iraque.

Folha - Para o governo Bush incluir uma ação contra o regime de Saddam no contexto da guerra contra o terrorismo, seriam necessárias provas de envolvimento do Iraque com grupos terroristas?
Walzer -
Sim, uma guerra dos EUA só seria justificável se eles apresentassem provas de envolvimento do Iraque com o terrorismo internacional. Já uma guerra da ONU exige justificativa de outro tipo. A ONU precisa apenas demonstrar que o Iraque está obstruindo de forma sistemática o trabalho dos inspetores.

Folha - Uma guerra da ONU deveria ter como objetivo a deposição de Saddam, como querem os EUA, ou deveria se concentrar apenas em desarmá-lo?
Walzer -
Em geral, mudanças de regime pela força não são uma boa idéia. Mas, se fosse o caso de realizar uma guerra contra um violador persistente de resoluções da ONU, acho que deveria haver uma sanção ao regime. Sim, seria necessário derrubar o violador.



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