São Paulo, Quarta-feira, 16 de Junho de 1999
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PARTIDA
Militares dizem temer que guerrilheiros passem a controlar a capital e ataquem população sérvia por vingança
Tropas iugoslavas deixam Pristina

KENNEDY ALENCAR
enviado especial a Pristina


"Com a nossa partida, o povo sérvio vai ficar sem proteção. A Otan deixará o ELK (guerrilha separatista albanesa) matar e expulsar todos daqui", diz, num tom ríspido, o soldado Branko. Ele se preparava para deixar Pristina.
O prazo para o Exército iugoslavo sair da capital de Kosovo acabou à meia-noite de ontem (19h em Brasília). A polícia civil sérvia deixou de existir. A segurança estará a cargo da Otan até a criação de uma nova força.
Segundo a Otan, a retirada corria ontem dentro do previsto. Cerca de 20 mil soldados iugoslavos (a metade do contingente na Província) tinham se retirado da chamada zona 1, no sul de Kosovo.
Impaciente com as perguntas, o soldado Branko teme que kosovares de etnia albanesa e guerrilheiros do ELK passem a policiar a Província. Acha que vão querer se vingar dos sérvios -tentativas de linchamento já ocorrem no sul.
Às 10h30, ele estava em um dos edifícios civis usados como quartel na guerra -bem atrás do Grand Hotel, o principal de Pristina. Empacotava armamento, tendas e ferramentas. Colocava tudo em um caminhão civil (durante a guerra, para tentar enganar a Otan, militares usaram veículos comuns).
A partir de hoje, os soldados sérvios que ficarem em Pristina não podem andar armados ou fardados. Branko não revela seu destino, só diz que sai hoje da cidade. Fica contrariado com as perguntas, mas, quando descobre que conversa com um brasileiro, acalma-se.
Próximo a ele, um outro soldado fala alto. Dá para entender que xingava os americanos e a Otan. Mas não quer dar entrevista. Branko brinca: "Brasil é amigo. Carnaval, Pelé". O soldado, que se chama Vuk, se aproxima.
De Belgrado, Branko, 30, diz que não tem raiva dos kosovares de etnia albanesa. Só com a guerra é que veio pela primeira vez na vida a Kosovo. Fala que é um "soldado profissional" e que nunca ele e os colegas atacaram civis. "Não acredito que paramilitares tenham matado, mas não posso garantir porque não andava com eles." Depois, não quer mais falar desse assunto.
Vuk, 21, de uma vila do norte de Kosovo, demonstra desprezo pelos albaneses. Branko, que aprendeu inglês vendo filmes, traduz. Vuk nega ter atacado kosovares de origem albanesa, mas diz que um colega matou e expulsou apenas os que "eram terroristas do ELK".
Branko diz que gostaria de ter enfrentado a Otan. "Não perdemos a guerra no campo. Não fomos derrotados lutando". "Quem derrotou vocês?", pergunta a Folha. "Política", responde. "Milosevic?", indaga o repórter. "É melhor não dizer o que penso."
Despede-se pedindo que o repórter escreva histórias sobre os refugiados sérvios.
A cem metros dali, Dvehexti Aslan, um carpinteiro de etnia albanesa de 38 anos, bebe com amigos.
Diz que seus compatriotas sofreram. "Agora é justo que os sérvios sofram", diz. "Pristina agora é do povo albanês", comemora. Às 12h30, os soldados sérvios já tinham quase desaparecido. Depois, sumiriam por completo.
Ao fim do dia, uma fileira com os últimos tanques deixa a cidade. Em alguns, com bandeiras iugoslavas, soldados, tentando demonstrar altivez, fazem o típico sinal de vitória sérvio (com três dedos).


A viagem do jornalista Kennedy Alencar é parcialmente custeada pela Editora DBA

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