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ESTRANHOS NO PARAÍSO
Em entrevista à Folha, imigrante ilegal conta como um dos companheiros de travessia morreu
Brasileiro relata morte em jornada aos EUA
FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO
Um companheiro morto, seis
horas enclausurados dentro de
um caminhão sob o sol do deserto
e mais oito dias preso em cadeias
americanas sem falar inglês. Esse
é o saldo da desastrada jornada de
um grupo de 29 imigrantes brasileiros rumo ao sonho americano,
com escala na fronteira mexicana.
Em entrevista à Folha ontem,
por telefone, o mineiro Tiago (nome fictício), 41, relata a trajetória
desde o contato com os agenciadores no Brasil até a libertação pela imigração americana, no Texas.
Emocionado, ele conta em detalhes como ocorreu a morte do
paulista Ricardo Luiz Ignacio, 31,
perto da cidade de El Paso (Texas), na fronteira com o México.
Foi o terceiro brasileiro a morrer
tentando chegar aos EUA dessa
forma nas últimas semanas.
Seu corpo foi encontrado no último dia 3 pela polícia americana,
mas não se sabia que ele pertencia
ao grupo de 28 imigrantes ilegais
brasileiros presos na mesma região dias depois.
Arrependido, Tiago não quis
aproveitar uma oportunidade rara: em vez de ficarem presos até
serem deportados, como ocorre
normalmente, os brasileiros ilegais foram soltos com o compromisso de comparecer a uma audiência dentro de 30 dias.
Vinte e três brasileiros aproveitaram a brecha e seguiram em direção a Boston, conforme haviam
planejado. Outros três não foram
soltos por serem reincidentes.
Tiago e um amigo, porém, pediram às autoridades americanas
autorização que ficassem presos
até serem deportados. Não conseguiram. "Expulsos" da cadeia anteontem, tentam agora reunir dinheiro para voltar ao Brasil.
Pai de três filhos entre 9 e 15
anos, o pequeno comerciante de
Mendes Pimentel (MG) disse que
não desembolsou um centavo pela viagem -os US$ 10 mil seriam
pagos em dez parcelas mensais
com o dinheiro ganho nos EUA.
Tiago disse que não havia outra
forma, pois seu ganho mensal no
Brasil não chegava a R$ 300.
Para o historiador da USP José
Carlos Meihy, autor do recém-lançado "Brasil Fora de Si", sobre
imigrantes brasileiros em Nova
York, trata-se de um esquema recente e perigoso: "O que acontece
é que as "agências" passam a financiar passagens e estabelecem um
acordo que envolve inclusive casas de envio de dinheiro dos EUA
para o Brasil. É um novo sistema
de dependência que pode ser
equiparado à escravidão, pois as
pessoas se endividam até em 60
meses para pagar aos "mediadores", e seus familiares, no Brasil, ficam como verdadeiros reféns".
A DECISÃO - Eu tenho amigos
que foram para lá [Boston], então
eu queria ir para ver se eu melhorava a vida, sabe? Sou casado, tenho três filhos, eu queria dar uma
vida melhor para eles.
PAGAMENTO - O pagamento era
parcelado: US$ 1.000 por mês, durante dez meses, para entregar na
casa da família. Em alguns casos
são nove meses; no meu caso,
eram dez. Se não acontecer, não
paga nada, ninguém vai pagar,
porque não entregou. A gente tinha de trabalhar, tirar os mil deles, e o resto pra gente. Acho que é
bastante sofrimento trabalhar ralando para pagar US$ 1.000 por
mês, fora gastos, telefone, aluguel.
A gente entra em contato por telefone, não sabe quem é nem nome de guia nem nada, não. Eles
me deram US$ 1.500 na mão para
a viagem. Mas isso é prejuízo deles, a gente não paga nada, não.
Quando a pessoa tem dinheiro,
chega ao lugar [nos EUA] e manda a família entregar. Não é o meu
caso. Se a pessoa não passa, ela já
liga para família e avisa: "Ó, não
paga não, que eu não cheguei". Aí
eles ficam no prejuízo também.
A MORTE DO BRASILEIRO - Era
um pretinho, fortinho. Ele passou
mal e não teve jeito. Eu fiquei sabendo só dias depois. Foi assim: a
gente saiu de uma casa na rua e foi
correndo. Ele correu bem na primeira vez, foram uns 20 minutos
correndo, uns 20 minutos andando, era uma areia, a gente pisa e
volta para trás, sabe? Mas os guias
falaram: "Voltem pra trás". Tinha
"sujado", o ônibus que ia pegar a
gente passou direto. Ele voltou e
cansou. E toca a correr de novo.
Aí ele desmaiou, trincando as
mãos, os dentes, e ficou num canto lá onde um colega dele o colocou porque não tinha como carregar. Fizeram respiração boca-a-boca, mas não teve jeito. Não tinha como socorrer, a gente já estava longe, não tinha carro. Eu
também estava passando mal demais, mas venci, graças a Deus.
Ficaram dois colegas com ele. Depois de uns dias, eles chegaram à
casa onde estávamos e disseram:
"O pretinho morreu".
O CAMINHÃO-BAÚ -Eram umas
três da madrugada quando nós
subimos num baú. Eles disseram
que seria só por duas horas, que
depois íamos passar para uma cabine, mas não aconteceu, não. Foi
terrível. O caminhão tinha umas
33 pessoas, quase todas desmaiando para morrer, e estava lotado de caixas. Na parte de cima
só havia um metro para a gente ficar sentado, com um calor terrível. Nós ficávamos sentados com
as pernas dobradas para cima.
Nós andamos por seis horas direto, sem ar nenhum. Teve uma
hora em que ele abriu uma brechinha e trancou a porta de novo;
andou mais um tempo e abriu
mais um pouquinho. Eu comecei
a chutar forte para ver se ele abria
a porta. Demos chutes no caminhão até que ele abrisse. Abriu a
porta. Você tinha de ter visto uma
mulher passando mal lá no meio,
ela estava arrancando a roupa.
A PRISÃO - Quando fomos presos, nós estávamos num mato para onde o motorista tinha mandado correr. O caminhão tentou
correr, mas a polícia foi atrás e
prendeu o motorista. Ele pegou
uma prisão perpétua. Mas nós fomos muito bem tratados, eles são
legais demais. Só a comidinha que
é diferente da da gente, né? A comidinha lá é meio difícil. Mas o
tanto que a gente andou de cadeia
em cadeia, nossa, "não tá no gibi",
eram quatro horas de viagem,
eram duas horas de viagem, uma
transferência de cadeia. Fomos
transferidos umas quatro ou cinco vezes. Até numa detenção a
gente foi parar.
A DESISTÊNCIA - A gente não quis
seguir viagem. Eu queria ficar
preso até conseguir uma deportação. Deixaram ficar só mais um
dia, aí a gente saiu e procurou o
consulado brasileiro. Nós estamos voltando neste domingo
agora. Eu sofri demais, pelo amor
de Deus! Ainda mais depois que
um colega morreu. Estou com
saudades demais da minha família. Já chorei muito, já liguei para
lá hoje [ontem]. Eu já contei o caso para minha mulher, ela até
chorou também.
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