São Paulo, domingo, 16 de julho de 2006

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ARTIGO

Quatro pares na dança da morte

Enquanto Hamas, Hizbollah, Síria, Irã, EUA, Israel e os governos palestino e libanês mantiverem suas políticas intransigentes, o Oriente Médio continuará a ser sombrio

RAMI G. KHOURI

É preciso compreender as relações entre quatro duplas de atores para captar o significado da escalada de ataques do Hamas, do Hizbollah e de Israel nos últimos dias. As quatro duplas em questão são formadas por Hamas e Hizbollah, os governos palestino e libanês, Síria e Irã e Israel e os EUA.
De maneira simplista, o presidente George W. Bush descreveu esta rodada de guerra mais recente como um conflito entre o bem e o mal, enquanto o governo israelense procura responsabilizar por ele os palestinos e libaneses, que estariam interessados apenas em travar uma guerra contra Israel, país que ama a paz.
A realidade, que é mais complexa e tem nuances, é que esses quatro pares, coletivamente, desempenham papéis nos combates que vêm ocorrendo, enquanto testemunhamos o auge de quatro décadas de políticas fracassadas que mantiveram o Oriente Médio tenso, violento e repleto de ira.
Nos últimos dez anos o Hizbollah e o Hamas emergiram como as principais forças políticas árabes de resistência às ocupações israelenses do Líbano e da Palestina. Gozam de apoio popular substancial em seus respectivos países, ao mesmo tempo que são criticados por suas políticas militantes, que inevitavelmente suscitam reações israelenses intransigentes. Assistimos a isso hoje no Líbano, quando a população libanesa se revolta contra Israel por seus ataques brutais contra instalações civis, ao mesmo tempo em que culpa os palestinos, outros árabes, Síria e Irã por fazer do Líbano o campo de batalha de outros conflitos -mas questiona com muito menos dureza a decisão do Hizbollah de desencadear esta última calamidade.
Não é coincidência o fato de Israel agora estar simultaneamente bombardeando e destruindo a infra-estrutura civil na Palestina e no Líbano, incluindo aeroportos, pontes, rodovias e usinas elétricas. Israel afirma que o está fazendo para impedir novos ataques de terror contra alvos israelenses, mas, na realidade, as últimas quatro décadas já demonstraram que suas políticas geram um efeito exatamente inverso.
Elas deram origem, poder, credibilidade e, agora, mandatos políticos ao Hamas e ao Hizbollah, cuja razão de ser tem sido o combate à ocupação israelense de suas terras. A destruição por Israel da vida normal dos palestinos e libaneses também resulta na destruição da credibilidade, eficácia e, em alguns casos, legitimidade dos sistemas de governo rotineiros, fazendo dos governos libanês e palestino atores-chave nos acontecimentos atuais -ou, na maioria dos casos, não-atores.
Libaneses e palestinos reagiram contra os ataques persistentes e cada vez mais selvagens de Israel contra populações civis inteiras, criando lideranças paralelas ou alternativas capazes de protegê-los e de garantir o funcionamento de serviços essenciais.
Efeito reverso
A cada novo ataque de Israel contra as lideranças do Hamas e do Hizbollah ou a suas populações civis, quatro coisas importantes acontecem: os governos libanês e palestino perdem poder e impacto; o Hamas e o Hizbollah angariam apoio popular maior -o que aumenta sua eficácia em termos de guerra de guerrilha e resistência; eles aumentam suas capacidades militares técnicas (principalmente em termos de mísseis de alcance maior e de melhores artefatos explosivos improvisados), e a campanha de resistência anti-Israel e anti-EUA que os grupos encabeçam angaria maior apoio político e popular em todo o Oriente Médio e em boa parte do mundo.
Este fato está ligado à terceira dupla de atores, Síria e Irã, que vêm cuidadosa e pacientemente se posicionando como aliados, patronos, anfitriões, financistas, fornecedores de armas e irmãos ideológicos do Hamas e do Hizbollah. Enquanto esses dois grupos islâmicos são movidos primordialmente pela resistência local a Israel e são palestinos e libaneses em sua identidade básica, ambos desempenham papéis importantes nas políticas externas do Irã e da Síria.
Hoje assistimos à convergência de duas tendências paralelas, mas interligadas: os atores que são Estados soberanos, Irã e Síria, travam batalhas políticas mortais contra Israel, os EUA e, cada vez mais, a Europa, enquanto o Hamas e o Hizbollah travam batalhas semelhantes contra os mesmos adversários. Do ponto de vista de Damasco e Teerã, faz todo o sentido fomentar maiores problemas agora para os EUA e Israel na fronteira entre Líbano e Israel. É um momento oportuno para atacar, pois Israel está profundamente perplexo em relação a como enfrentar a resistência do Hamas na Palestina, enquanto os EUA parecem incapazes de oferecer qualquer proposta política senão a de defender o direito a autodefesa de Israel, ao mesmo tempo em que nega o mesmo direito aos civis libaneses e palestinos.
A quarta dupla, EUA e Israel, se encontra na bizarra posição de repetir políticas que fracassam constantemente há 40 anos. Israel tem os seguintes resultados a mostrar por seu histórico de intransigência: hoje ele se vê cercado por dois movimentos robustos de resistência islâmica que possuem poder de fogo e apoio popular maior do que antes; sempre que há eleições, as populações árabes em toda a região vêm cada vez mais votando em favor de movimentos políticos islâmicos; os governos árabes em muitos países vizinhos estão imobilizados e virtualmente irrelevantes; e há inimigos ideológicos determinados e cada vez mais desafiadores em Teerã e Damasco, que não hesitam em usar todas as armas ao seu dispor, por mais prejudiciais que possam ser aos civis e à soberania do Líbano e da Palestina.
Os EUA, por sua parte, assumiram uma posição estranhamente marginal. A política que escolheram seguir os alinhou de maneira inequívoca com Israel. O país impôs sanções ao Irã, ao Hizbollah e ao Hamas, de modo que nem sequer pode dialogar com eles, e há anos vem pressionando e ameaçando a Síria, sem qualquer êxito real. A única superpotência do mundo se mostra singularmente impotente na crise atual.
Enquanto esses quatro pares de atores principais persistirem com suas políticas intransigentes, as conseqüências continuarão a ser sombrias. A saída desse ciclo seria que todos os atores negociassem uma solução política que atendesse a suas reivindicações e queixas legítimas. Todo o mundo parece estar disposto a fazê-lo, menos Israel e os EUA, que confiam no uso da força militar, em ocupações prolongadas, em sanções diplomáticas e em ameaças. O que Israel e os EUA farão quando não houver mais aeroportos, pontes e usinas árabes a destruir? A inutilidade dessa política deveria estar clara, e uma solução diplomática deveria ser buscada de maneira séria, pela primeira vez.


RAMI G. KHOURI é editor-chefe do jornal "Daily Star", de Beirute
Tradução de CLARA ALLAIN


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