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DEPOIS DO TALEBAN
Confusão marca a queda de Jalalabad
Líderes tribais fazem caravana de Peshawar (Paquistão) até cidade abandonada pela milícia
IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A JALALABAD
Poeira, rajadas de fuzil Kalashnikov e muita, muita confusão.
Foi assim a retomada final de Jalalabad pelas tribos do leste afegão,
todas da etnia pashtu e descontentes com os avanços dos rivais
da Aliança do Norte em todo território abandonado pela milícia
extremista Taleban.
Cerca de 2.000 milicianos chegaram ontem à cidade, vindos da
região de Peshawar (Paquistão),
para se unirem a milhares de outros que aportaram de outras cidades afegãs. A Folha acompanhou a pequena epopéia, transformada em jogada de marketing
pela etnia ao transportar um exército de cem jornalistas que se espremiam na região da fronteira
atrás de uma oportunidade de entrar no Afeganistão.
Os pashtus são majoritários em
solo afegão, contando cerca de
40% da população, em contraste
com as minorias da Aliança
-principalmente tadjiques e uzbeques. Jalalabad foi abandonada
entre anteontem e ontem pelos
homens do Taleban, que devolveram o poder ao pashtu Abdul
Qaddir, antigo governador da
Província de Nangarhar.
Qaddir, como a multidão que
entrou ontem nas ruas de Jalalabad, estava exilado em Peshawar
desde o início da ocupação do Taleban (em agosto de 1996), distante 132 km por estradas que passam pelo legendário passo
Khyber.
O comboio, com 15 ônibus e várias vans e picapes, saiu de Peshawar por volta das 14h30, depois de
enfrentar uma manhã inteira de
protelações das autoridades paquistanesas. Para chegar ao Afeganistão, é preciso passar por
uma área tribal, nome dado a
áreas onde não há a lei como é
concebida por Islamabad, mas
sim um regime especial onde os
chefes das tribos dão as ordens. E
o Paquistão não costuma liberar a
área para passagem de visitantes,
quanto mais jornalistas.
Transpõe-se o passo com relativa facilidade, porque a estrada
não é muito ruim. Decepcionante
para quem se lembra da história
do médico vitoriano William
Brydon, que virou lenda em janeiro de 1842 ao se tornar o único sobrevivente de uma marcha pelo
Khyber de 16 mil britânicos expulsos pelos afegãos de Cabul.
Às 17h, a visão da barbárie na
fronteira. Na vila de Torkham, dezenas de caminhões com ajuda
humanitária, centenas de refugiados e uma suspeitíssima massa de
contrabandistas armados se misturam aos gritos à poeira local. Os
guardas paquistaneses fazem o
que podem, mas o movimento é
frenético: com o ônibus em que a
reportagem estava passaram pelo
menos quatro rapazes, correndo
junto às janelas.
Uma placa resume o sentimento no local: ""Último ponto permitido para estrangeiros". Mesmo
sem dar bola para o sinal, que estava caído meio de lado à beira da
estrada, os jornalistas se entreolham e fazem piadinhas sem graça. Um dos afegãos no ônibus,
Chamir Chano, avisa, sorridente:
""Bem-vindos ao Afeganistão! Eu
mesmo não venho aqui há alguns
anos, mas o lugar é lindo".
Em termos estéticos, ele está
certo. Todos os 78 km entre a
fronteira e Jalalabad passam por
um vale encoberto por uma névoa
seca, deixando para trás a fumaça
paquistanesa e emoldurando com
o sol do fim da tarde os cumes da
cadeia do Hindu Kush.
Na estrada, de tempos em tempos se passa por um ""khebar",
uma pequena guarnição de mujahedin. Eles já estavam lá, com
suas Kalashnikov, antes da retirada do Taleban, mas são extremamente simpáticos aos jornalistas
-em especial os ocidentais.
Rajadas de fuzil
Gritam e, para terror dos visitantes, disparam rajadas do famoso fuzil russo para comemorar a
""libertação" do Taleban. ""Veja, libertação não é a palavra. Quase
todo mundo aqui se acomodou
bem ao regime do Taleban porque eles são pashtus como a gente. Agora, com a Aliança do Norte
querendo poder só para ela, não
sei", afirma outro afegão exilado
em Peshawar que voltou a Jalalabad, Ahmed Hanoq.
Entre os campos que alternam
cultivo de tabaco com o da papoula que dá origem à heroína,
crianças também saúdam o comboio, sem saber exatamente do
que se trata. Em Sarsahahi, um
campo de refugiados que já teve
10 mil fugitivos da guerra civil no
começo da década de 90 começa a
se tornar uma cidade, com a indefectível presença de uma mesquita com os minaretes e cúpulas
com detalhes em gesso fabricados
na região de Taxila, perto de Islamabad.
Bem-vindo a Jalalabad
Às 18h, o primeiro ônibus do
comboio passa a placa ""Bem-vindo a Jalalabad", em inglês mesmo,
após ter ultrapassado o aeroporto
local -alvo de intensos bombardeios norte-americanos desde o
início da ofensiva.
A cidade, que por vezes parece
não ser mais do que uma vila na
aparência, abriga na verdade 700
mil habitantes. Como já era noite
quando o comboio chegou, fica
difícil avaliar exatamente o impacto dos bombardeios na vida
da cidade.
Mas é fácil ver no que está dando a retirada do Taleban. A confusão típica da mudança de poder
em um local sem instituições ganha contornos dramáticos em Jalalabad. Picapes patrulham as
ruas com soldados armados com
os famosos RPGs (sigla em inglês
para o lançador de granadas com
propulsão a foguete) e, lógico, o
filho pródigo do soviético Mikhail
Kalashnikov.
As últimas escaramuças foram
registradas na manhã de ontem.
Suspeita-se que em sua retirada
para o sul os homens do Taleban
passarão algum tempo nas montanhas da região.
""Nós não sabemos onde eles estão. Mas certamente estão longe",
disse Hadji Gadir, um dos comandantes políticos e militares de
maior prestígio no local. Enquanto isso, as milícias pashtus se misturam com o povo nas ruas de Jalalabad, não perdendo uma oportunidade de gritar ""vitória" e, orgulhosos, posarem da mesma forma que seus antecessores do Taleban faziam, com armas em cima
de caçambas das picapes.
Ontem, os pashtus fizeram uma
assembléia tribal para discutir sua
relação com a Aliança do Norte,
que tomou cerca de metade do
país do Taleban, inclusive o entorno do território dominado pelo
governador Qaddir e seus pares.
Reunião de líderes
Em uma cena que lembrou a da
queda de Damasco no filme ""Lawrence da Arábia" (David Lean,
1962), cerca de 50 chefes e seus assistentes se sentaram em um salão
do palácio do governo abandonado pelo Taleban para discutir
quem iria cuidar de cada pedaço
da administração local.
Como no filme, onde os líderes
da rebelião árabe contra os turcos
na Primeira Guerra Mundial não
se entendem sobre problemas
simples, a reunião de ontem não
acabou com mais do que promessas de novas negociações. Segundo um líder que conversou com
jornalistas à porta, não houve
acerto sobre quem iria cuidar das
funções de bombeiro e polícia da
região, por exemplo.
O grupo pashtu que transportou a Folha, o Hizb-i-Islam, é retrato da volatilidade política na
região. Em 96, após ter em suas fileiras o mulá Mohammad Omar,
líder do Taleban, deu ajuda ao
saudita Osama bin Laden. Depois, brigou com os extremistas,
mas, até hoje, mantém alguns
contatos com a milícia.
""Vamos conceder uma entrevista coletiva amanhã (hoje) sobre o que foi discutido. Por ora,
podemos dizer que não somos
inimigos declarados da Aliança
do Norte, apenas que precisamos
conversar com eles", afirmou um
porta-voz do grupo.
Enquanto isso, os soldados, milicianos e antigos refugiados voltavam às ruas de Jalalabad, sem
saber exatamente se lutariam
mais. Pelos acontecimentos de
ontem, o tal ""governo de ampla
base" repetido à exaustão pelos líderes ocidentais vai precisar de
muito mais que boas palavras para sair do papel.
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