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Boom tecnológico financia guerra no Congo
Governo, insurgentes, vizinhos e milícias locais disputam minas de ouro e de minério crucial para indústria eletrônica
Países ricos relutam em enviar reforços para a ONU no leste do Congo e vizinhos ameaçam intervir, acirrando temor de guerra regional
CLARA FAGUNDES
DA REDAÇÃO
Celulares, mísseis e computadores alimentam os conflitos
no leste da República Democrática do Congo. Apenas 0,3%
dos 60 milhões de congoleses
têm acesso à internet, mas a
disputa por um mineral essencial para os componentes eletrônicos, a colombita-tantalita,
opõe governo, rebeldes apoiados por países vizinhos, grupos
locais de "autodefesa" e milícias hutus remanescentes do
genocídio de Ruanda.
Devastado pela guerra civil
intermitente, parcialmente interrompida pelo acordo de paz
de 2003, o Congo é incapaz de
controlar suas fronteiras e seu
rico subsolo, sujeito a uma "sistemática e organizada expropriação", segundo relatório da
ONU. Abundantes no leste do
Congo, o ouro, a cassiterita e a
columbita-tantalita -conhecida na África pela abreviação
coltan- cruzam as fronteiras
de Ruanda, Uganda e Burundi e
desaparecem nas estatísticas
de contrabando.
Os mineradores ganham até
US$ 200 por mês -uma pequena fortuna no Congo, onde o
desemprego é generalizado e a
renda mensal de um trabalhador raramente supera US$ 10
mensais. A chegada maciça de
hutus, que deixaram Ruanda
após o massacre dos tutsis, em
1994, acirrou a disputa pelo eldorado.
As técnicas de extração são
precárias, diz o geólogo brasileiro Nereu Heidrich, do Departamento Nacional de Produção Mineral, que compara o
garimpo congolês de coltan a
Serra Pelada. Não há controle
da produção. A origem do minério importado por países desenvolvidos tampouco é certificada. Por isso, diz Heidrich, "é
fácil "lavar" a columbita-tantalita contrabandeada".
A estimativa de que o Congo
possui 80% das reservas de coltan, divulgada pela Anistia Internacional, é "provavelmente
exagerada", acredita o pesquisador Nilson Botelho, da Universidade de Brasília. Os dados
atuais, que confirmam apenas
1% das supostas reservas congolesas, tampouco oferecem
uma estimativa confiável, na
opinião dos pesquisadores.
"Faltam estudos geológicos na
região", explica Botelho.
O controle estatal, precário, é
inexistente nas Províncias conflagradas de Kivu do Norte e
Kivu do Sul. As áreas de mineração são disputadas por grupos armados, divididos por rivalidades étnicas.
Rebeldes tutsis liderados pelo general renegado Laurent
Nkunda, que tem apoio do governo ruandês, enfrentam as
milícias locais "mayi mayi" e
grupos hutus remanescentes
do genocídio de Ruanda. Soldados do Exército congolês desertaram em Goma, capital regional, e a Monuc (Missão da ONU
no Congo), maior missão de
paz em exercício no mundo, assiste impassível ao conflito.
A violência forçou cerca de
300 mil congoleses a deixarem
suas casas. "As frentes de batalha mudam rapidamente", conta François Dumont, porta-voz
da ONG Médicos Sem Fronteira no país. "Temos casos de famílias forçadas a se deslocarem
sete vezes." Nos campos que
abrigam os deslocados, falta
água potável, comida e latrinas.
Para o analista congolês Muzong Kodi, do centro de pesquisa internacional Chatham
House, as rivalidades étnicas
são uma "cortina de fumaça".
"As causas fundamentais do
conflito são a guerra dos minerais, que nunca foi discutida
nas negociações de paz, e a impunidade das violações humanitárias no país."
Guerra Mundial Africana
Kodi vê com receio a perspectiva de envolvimento dos
países da região no conflito. Na
Cúpula sobre a Paz no Congo,
recém-realizada no Quênia, os
africanos criticaram a inércia
da ONU e prometeram mandar
tropas, se necessário.
O Conselho de Segurança
afirma haver consenso sobre o
envio de reforços. Mas, enquanto os países desenvolvidos
resistem em ceder militares, os
africanos mobilizam suas tropas. Após a derrota da diplomacia francesa, que tentou articular o envio de soldados europeus, Angola anunciou nesta
semana que seu Exército já está
em estado de alerta.
Teme-se uma escalada da
violência, como a que ocorreu
entre 1998 e 2003, quando seis
Exércitos lutaram na guerra civil congolesa. O conflito, também chamado de Guerra Mundial Africana, deixou 5 milhões
de vítimas, a maioria civis mortos pela fome ou por doenças,
em meio ao fogo cruzado.
Para o coronel Jean-Paul
Dietrich, porta-voz da Monuc,
a presença de tropas estrangeiras fora da bandeira da ONU
agravaria a situação no Congo.
Conflitos de interesses persistem, apesar do fim formal das
hostilidades, em 2003.
"Creio que Ruanda se aproveitou da fragilidade do Estado
congolês para escavar as minas
no limite da legalidade", diz o
militar. A reconciliação dos países, segundo ele, passa também
pelo julgamento das milícias
hutus acusadas do genocídio de
1994. A despeito de um acordo
bilateral, há indícios de que o
Congo coopere com os milicianos, que combatem Nkunda.
A paz armada nos Grandes
Lagos pode ser prelúdio da "segunda guerra mundial" africana, como temem Kodi e Dietrich, ou início de uma solução
regional, diante da falência da
ONU.
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