São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2008

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Boom tecnológico financia guerra no Congo

Governo, insurgentes, vizinhos e milícias locais disputam minas de ouro e de minério crucial para indústria eletrônica

Países ricos relutam em enviar reforços para a ONU no leste do Congo e vizinhos ameaçam intervir, acirrando temor de guerra regional


CLARA FAGUNDES
DA REDAÇÃO

Celulares, mísseis e computadores alimentam os conflitos no leste da República Democrática do Congo. Apenas 0,3% dos 60 milhões de congoleses têm acesso à internet, mas a disputa por um mineral essencial para os componentes eletrônicos, a colombita-tantalita, opõe governo, rebeldes apoiados por países vizinhos, grupos locais de "autodefesa" e milícias hutus remanescentes do genocídio de Ruanda.
Devastado pela guerra civil intermitente, parcialmente interrompida pelo acordo de paz de 2003, o Congo é incapaz de controlar suas fronteiras e seu rico subsolo, sujeito a uma "sistemática e organizada expropriação", segundo relatório da ONU. Abundantes no leste do Congo, o ouro, a cassiterita e a columbita-tantalita -conhecida na África pela abreviação coltan- cruzam as fronteiras de Ruanda, Uganda e Burundi e desaparecem nas estatísticas de contrabando.
Os mineradores ganham até US$ 200 por mês -uma pequena fortuna no Congo, onde o desemprego é generalizado e a renda mensal de um trabalhador raramente supera US$ 10 mensais. A chegada maciça de hutus, que deixaram Ruanda após o massacre dos tutsis, em 1994, acirrou a disputa pelo eldorado.
As técnicas de extração são precárias, diz o geólogo brasileiro Nereu Heidrich, do Departamento Nacional de Produção Mineral, que compara o garimpo congolês de coltan a Serra Pelada. Não há controle da produção. A origem do minério importado por países desenvolvidos tampouco é certificada. Por isso, diz Heidrich, "é fácil "lavar" a columbita-tantalita contrabandeada".
A estimativa de que o Congo possui 80% das reservas de coltan, divulgada pela Anistia Internacional, é "provavelmente exagerada", acredita o pesquisador Nilson Botelho, da Universidade de Brasília. Os dados atuais, que confirmam apenas 1% das supostas reservas congolesas, tampouco oferecem uma estimativa confiável, na opinião dos pesquisadores. "Faltam estudos geológicos na região", explica Botelho.
O controle estatal, precário, é inexistente nas Províncias conflagradas de Kivu do Norte e Kivu do Sul. As áreas de mineração são disputadas por grupos armados, divididos por rivalidades étnicas.
Rebeldes tutsis liderados pelo general renegado Laurent Nkunda, que tem apoio do governo ruandês, enfrentam as milícias locais "mayi mayi" e grupos hutus remanescentes do genocídio de Ruanda. Soldados do Exército congolês desertaram em Goma, capital regional, e a Monuc (Missão da ONU no Congo), maior missão de paz em exercício no mundo, assiste impassível ao conflito.
A violência forçou cerca de 300 mil congoleses a deixarem suas casas. "As frentes de batalha mudam rapidamente", conta François Dumont, porta-voz da ONG Médicos Sem Fronteira no país. "Temos casos de famílias forçadas a se deslocarem sete vezes." Nos campos que abrigam os deslocados, falta água potável, comida e latrinas.
Para o analista congolês Muzong Kodi, do centro de pesquisa internacional Chatham House, as rivalidades étnicas são uma "cortina de fumaça". "As causas fundamentais do conflito são a guerra dos minerais, que nunca foi discutida nas negociações de paz, e a impunidade das violações humanitárias no país."

Guerra Mundial Africana
Kodi vê com receio a perspectiva de envolvimento dos países da região no conflito. Na Cúpula sobre a Paz no Congo, recém-realizada no Quênia, os africanos criticaram a inércia da ONU e prometeram mandar tropas, se necessário.
O Conselho de Segurança afirma haver consenso sobre o envio de reforços. Mas, enquanto os países desenvolvidos resistem em ceder militares, os africanos mobilizam suas tropas. Após a derrota da diplomacia francesa, que tentou articular o envio de soldados europeus, Angola anunciou nesta semana que seu Exército já está em estado de alerta.
Teme-se uma escalada da violência, como a que ocorreu entre 1998 e 2003, quando seis Exércitos lutaram na guerra civil congolesa. O conflito, também chamado de Guerra Mundial Africana, deixou 5 milhões de vítimas, a maioria civis mortos pela fome ou por doenças, em meio ao fogo cruzado.
Para o coronel Jean-Paul Dietrich, porta-voz da Monuc, a presença de tropas estrangeiras fora da bandeira da ONU agravaria a situação no Congo. Conflitos de interesses persistem, apesar do fim formal das hostilidades, em 2003.
"Creio que Ruanda se aproveitou da fragilidade do Estado congolês para escavar as minas no limite da legalidade", diz o militar. A reconciliação dos países, segundo ele, passa também pelo julgamento das milícias hutus acusadas do genocídio de 1994. A despeito de um acordo bilateral, há indícios de que o Congo coopere com os milicianos, que combatem Nkunda.
A paz armada nos Grandes Lagos pode ser prelúdio da "segunda guerra mundial" africana, como temem Kodi e Dietrich, ou início de uma solução regional, diante da falência da ONU.


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