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São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 2003

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COMENTÁRIO

Um espetáculo político

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

O julgamento de Saddam Hussein deverá ser a oportunidade que Washington esperava para justificar não só a ocupação do Iraque como a própria Doutrina Bush. Para que esse fim seja atingido, será necessário que o tribunal onde o ex-ditador responderá por seus crimes se converta em palco de um espetáculo avassalador -não a tolice hollywoodiana do chefe americano no Iraque ("senhoras e senhores, nós o pegamos"), mas uma exibição de dor profunda. Não podem restar dúvidas sobre o caráter infame do réu e, por conseguinte, sobre o acerto da decisão de derrubá-lo, ao arrepio da leis internacionais.
Nesse sentido, o caso lembra o de Adolf Eichmann, o comandante da máquina nazista de extermínio dos judeus na Segunda Guerra. Sequestrado por agentes israelenses em Buenos Aires, foi levado para Israel, julgado e executado na forca em 1961.
Das várias irregularidades do processo do ex-chefe nazista, ao menos duas são flagrantes: sua captura atropelou a legislação internacional e em seu julgamento não foram permitidas testemunhas de defesa. Nesses termos, se a intenção de Israel fosse simplesmente "fazer justiça", bastava matar Eichmann em Buenos Aires -afinal, outros pilares do direito internacional já haviam sido mesmo ignorados. Não se tratava, portanto, apenas de "fazer justiça", mas de criar a oportunidade para que um discurso político se difundisse e se cristalizasse. Por essa razão foi necessário encenar algo o mais próximo possível de um julgamento.
O mais importante é que acusou-se o réu de crimes "contra a humanidade", razão pela qual o caso deveria ter sido julgado num tribunal internacional, isto é, segundo procedimentos que não permitiriam a abordagem de nenhum outro aspecto que não fossem aqueles diretamente ligados à acusação. Isso não interessou a Israel nos anos 60 nem interessa aos Estados Unidos agora.
No caso israelense, conforme demonstra Hannah Arendt em seu livro "Eichmann em Jerusalém", o então premiê e herói da independência, Ben-Gurion, queria que o julgamento expusesse "lições" a diferentes platéias. Dessas mensagens, duas se destacam: que o Estado judeu representava um imperativo moral; e que os judeus só estariam em segurança em Israel, sob as leis israelenses, sem precisar mais invocar direitos humanos, reservados a minorias fracas.
No caso americano, julgar Saddam segundo esse modelo "ampliado" permitirá, em meio ao desfile de testemunhos sobre as atrocidades do regime, que se difundam as seguintes "lições": que a intervenção no Iraque foi um imperativo moral cuja validade não se esgota nesse caso; e, sobretudo, que os iraquianos -assim como o restante do mundo- só terão segurança se se converterem à democracia ocidental.


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