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COMENTÁRIO
Um espetáculo político
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
O julgamento de Saddam Hussein deverá ser a oportunidade
que Washington esperava para
justificar não só a ocupação do
Iraque como a própria Doutrina
Bush. Para que esse fim seja atingido, será necessário que o tribunal onde o ex-ditador responderá
por seus crimes se converta em
palco de um espetáculo avassalador -não a tolice hollywoodiana
do chefe americano no Iraque
("senhoras e senhores, nós o pegamos"), mas uma exibição de
dor profunda. Não podem restar
dúvidas sobre o caráter infame do
réu e, por conseguinte, sobre o
acerto da decisão de derrubá-lo,
ao arrepio da leis internacionais.
Nesse sentido, o caso lembra o
de Adolf Eichmann, o comandante da máquina nazista de extermínio dos judeus na Segunda Guerra. Sequestrado por agentes israelenses em Buenos Aires, foi levado para Israel, julgado e executado na forca em 1961.
Das várias irregularidades do
processo do ex-chefe nazista, ao
menos duas são flagrantes: sua
captura atropelou a legislação internacional e em seu julgamento
não foram permitidas testemunhas de defesa. Nesses termos, se
a intenção de Israel fosse simplesmente "fazer justiça", bastava matar Eichmann em Buenos Aires
-afinal, outros pilares do direito
internacional já haviam sido mesmo ignorados. Não se tratava,
portanto, apenas de "fazer justiça", mas de criar a oportunidade
para que um discurso político se
difundisse e se cristalizasse. Por
essa razão foi necessário encenar
algo o mais próximo possível de
um julgamento.
O mais importante é que acusou-se o réu de crimes "contra a
humanidade", razão pela qual o
caso deveria ter sido julgado num
tribunal internacional, isto é, segundo procedimentos que não
permitiriam a abordagem de nenhum outro aspecto que não fossem aqueles diretamente ligados à
acusação. Isso não interessou a Israel nos anos 60 nem interessa aos
Estados Unidos agora.
No caso israelense, conforme
demonstra Hannah Arendt em
seu livro "Eichmann em Jerusalém", o então premiê e herói da
independência, Ben-Gurion, queria que o julgamento expusesse
"lições" a diferentes platéias. Dessas mensagens, duas se destacam:
que o Estado judeu representava
um imperativo moral; e que os judeus só estariam em segurança
em Israel, sob as leis israelenses,
sem precisar mais invocar direitos humanos, reservados a minorias fracas.
No caso americano, julgar Saddam segundo esse modelo "ampliado" permitirá, em meio ao
desfile de testemunhos sobre as
atrocidades do regime, que se difundam as seguintes "lições": que
a intervenção no Iraque foi um
imperativo moral cuja validade
não se esgota nesse caso; e, sobretudo, que os iraquianos -assim
como o restante do mundo- só
terão segurança se se converterem à democracia ocidental.
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