São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001

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HISTÓRIA

Para Jonathan Spence, situação lembra litígios do passado, mas conjugação de fatores pode levar a conflito real

Historiador vê ameaça na crise EUA-China

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

O atual esfriamento das relações diplomáticas entre a China e os EUA não é uma surpresa. Ele lembra crises envolvendo os dois governos e litígios entre Pequim e Londres ocorridos no passado. Entretanto uma conjugação de fatores negativos que opusessem os chineses aos americanos, como a concretização do plano dos EUA de construir um sistema de defesa antimísseis, poderia provocar um conflito verdadeiro, que teria consequências terríveis para todos.
A análise é do renomado historiador britânico Jonathan D. Spence, diretor da Universidade Yale (EUA), uma das maiores autoridades em China do mundo e autor de "The Gate of Heavenly Peace: The Chinese and Their Revolution 1895-1980" (o portão da paz celestial: os chineses e sua revolução 1895-1980), "Em Busca da China Moderna" e "Mao".
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - Como o sr. analisa as conturbadas relações diplomáticas entre a China e os EUA?
Jonathan D. Spence -
Do ponto de vista histórico, a situação atual lembra os problemas de jurisdição e direitos de diferentes países na China, que eram bastante comuns no final do século 18 e no início do século 19.
Algumas dessas crises foram bastante similares à situação atual e envolviam os britânicos e os americanos, que estavam desenvolvendo relações comerciais dentro da China. Geralmente, essas relações causavam conflitos, que levavam a "mortes acidentais", como a do piloto do caça chinês que colidiu com o avião de espionagem dos EUA em abril.
Essas mortes acidentais também se transformavam em problemas delicados, pois havia disputas sobre qual sistema legal tinha jurisdição para arbitrar as questões e sobre uma possível compensação a ser paga ao país que se sentia prejudicado.
Assim, para um historiador, os argumentos que Washington e Pequim avançaram durante a crise diplomática recente são surpreendentemente familiares.

Folha - Qual é a dimensão do poder do presidente chinês, Jiang Zemin, atualmente?
Spence -
Na China, não creio que o poder seja hoje tão centralizado quanto era no passado, com Mao Tse-tung [líder da revolução chinesa de 1949" ou com seu sucessor, Deng Xiaoping.
Creio que, desde a morte de Deng, ocorrida em 1997, haja um grupo de líderes que tomam as decisões. Nenhum dos dirigentes chineses atuais segue a mesma tradição revolucionária, pois eles são de uma geração mais nova.
Esses líderes nasceram no fim dos anos 20 ou na década de 30. Assim, eles só se filiaram ao Partido Comunista durante a guerra civil ou depois dela, num período que vai de 1945 a 1950.
É verdade que, à época, ainda era perigoso filiar-se ao partido, porém isso não era o mesmo que ser um líder revolucionário. Talvez seja por isso que eles tenham tentado reconstruir o heroísmo revolucionário na figura do piloto morto na colisão com o EP-3E americano, Wang Wei.
Para historiadores, o culto da personalidade do piloto morto lembra fatos ocorridos no passado recente da China. Portanto a liderança política chinesa atual tem de discutir assuntos importantes em grupo, talvez até com membros do Parlamento, e, certamente, com a cúpula militar.

Folha - Por quanto tempo o Partido Comunista conseguirá administrar o paradoxo de ter um sistema político fechado e uma economia que se abre cada vez mais para a comunidade internacional?
Spence -
Essa abertura econômica teve início em 1978, com Deng, e, à época, já tínhamos dúvidas sobre suas consequências políticas. Esse fenômeno aconteceu há 23 anos e, surpreendentemente, ainda não gerou mudanças políticas substanciais.
O Partido Comunista chinês tem tentado concentrar-se no aspecto econômico e "esquece" o lado político. Ele teve a possibilidade de assistir ao colapso da União Soviética [1991" e está determinado a não permitir que disputas ou mudanças políticas destruam as estruturas do país.
A emergente classe média chinesa crê que, atualmente, ainda seja mais prudente não desafiar o sistema. Afinal, o poder central poderia reagir drasticamente se isso viesse a acontecer.
É curioso, mas os chineses têm o direito de falar sobre o que bem querem -podem criticar o governo e ridicularizar as estruturas governamentais- na esfera privada. Contudo eles não podem fazer essas coisas em público. Há uma enorme diferença na China entre discussões privadas e manifestações públicas.
Quando Mao ainda era o líder político do país, até as discussões privadas eram extremamente perigosas, pois havia um sistema de delação bastante ativo. Pessoas delatavam seus amigos por acreditar que estivessem prestando um serviço ao país. Hoje, porém, esse sistema não mais existe.
Assim, as pessoas que são punidas ou enviadas a campos de trabalho atualmente são aquelas que insistem em fazer declarações públicas criticando o sistema.
Não creio que venha a existir pressão endógena para mudar o regime, já que o perigo que correriam os agentes dessa pressão seria considerável. Isso para camponeses, membros da classe média ou pessoas que fazem parte da nova "elite capitalista" chinesa. Mesmo os filiados ao Partido Comunista correriam perigo se fizessem tais reivindicações.
Na China, ninguém quer ver o país atravessar o mesmo tipo de crise que assola a Rússia desde o fim da URSS. Por isso o governo tenta punir de modo exemplar casos de corrupção. Pequim também quer sufocar sociedades secretas, gangues, tráfico de drogas.
Seitas religiosas, como a Fa Lun Gong, sofrem com isso porque o governo as vê como uma força que pode levar à desordem, não à salvação espiritual. O governo considera a Fa Lun Gong um movimento subversivo.
Os líderes políticos atuais nasceram num dos piores momentos da história chinesa. Os primeiros 30 anos do século 20 foram terríveis para milhões de pessoas na China. Havia fragmentação de poder, líderes militares locais dominando parte do país.
Nas Províncias, o governo central perdia força. E, em Pequim, ele já era bastante fraco. Assim, os líderes políticos atuais querem evitar que, mesmo de modo incipiente, algo desse gênero possa ocorrer e estimulam um certo conservadorismo, usando como pretexto a continuidade política.

Folha - O sr. acredita que o plano do novo premiê do Japão, Junichiro Koizumi, de transformar as forças de autodefesa do país num Exército possa desestabilizar a geopolítica do leste da Ásia?
Spence -
A imagem do Japão na China é ruim, as lembranças que os chineses têm do Japão são terríveis. Isso já dura mais de um século, pois teve início na guerra de 1894, quando as ações japonesas tiveram um impacto bastante negativo sobre a economia chinesa.
Na China, as lembranças históricas de atos dos japoneses são mais negativas que as das ações dos britânicos ou dos americanos. O imperialismo japonês é descrito na China como tendo sido intensamente agressivo e extraordinariamente violento.
Portanto a criação de um verdadeiro Exército ou, no futuro, de uma Marinha do Japão teria um efeito terrível no que se refere ao equilíbrio de poder no leste da Ásia. Se observarmos a evolução geopolítica da região nos últimos cem anos, veremos que isso é óbvio e que o temor dos chineses não é infundado.
A Rússia não tem a força da União Soviética, sua frota do Pacífico foi enfraquecida e suas bases localizadas em Vladivostok foram praticamente desativadas. Além disso, os americanos deixaram suas posições nas Filipinas. Com tudo isso, a China ficou numa situação privilegiada nas águas do leste asiático. Ora, o principal possível antagonista da China na região hoje é o Japão.
Tóquio poderá levar 20 ou 30 anos para estabelecer-se como verdadeira potência geoestratégica regional. Contudo, sem dúvida, isso provocará um real nervosismo na China, o que é perfeitamente compreensível.
Há um antagonismo considerável entre os chineses e os japoneses. No século 20, as pessoas falavam de um movimento pan-asiático, porém não creio que a China e o Japão se sentissem verdadeiramente ligados por causa do peso histórico de suas relações diplomático-militares precedentes.

Folha - Como evoluirá a situação de Taiwan? Ainda faz sentido Washington apoiar Taipé?
Spence -
Geopoliticamente, a situação de Taiwan é extremamente volátil, instável. O presidente dos EUA, George W. Bush, tem dado um apoio mais claro a Taipé e até permitiu que seu colega taiwanês, Chen Shui-bian, viesse aos EUA. Isso faz com que o Partido Comunista chinês fique ainda mais irritado em relação a Taiwan, que Pequim considera uma "Província rebelde".
Contudo, na verdade, quando faz comentários favoráveis a Taiwan, Bush busca enviar uma mensagem a nacionalistas republicanos americanos. Trata-se de uma retórica que agradava aos republicanos dos anos 50 e 60, e Bush está tentando ressuscitá-la.
Depois da Guerra da Coréia e por algum tempo, os EUA foram aliados incondicionais de Taiwan. Assim, para muitas pessoas que fazem política nos EUA hoje, a decisão de não "trair" Taiwan é muito importante, pois elas acreditam que Taiwan sempre tenha sido um verdadeiro aliado do país.

Folha - Esse pensamento não é extemporâneo atualmente, uma vez que a Guerra Fria já acabou?
Spence -
Com certeza. Porém há um certo sentimento de lealdade no Congresso, e, logicamente, as ligações comerciais entre americanos e taiwaneses ainda são importantes e desempenham um papel crucial no processo de tomada de decisões do governo.
No que concerne a Taiwan, os EUA, como outros países, não querem parecer fracos diante da comunidade internacional. Bill Clinton foi bastante criticado por isso. Ora, Bush, seus assessores e seus conselheiros querem ter certeza de que não terão essa imagem. Para tanto, fazem afirmações taxativas a respeito de determinados assuntos controversos.
Parece que a nova administração americana decidiu utilizar a questão de Taiwan para defender essa posição. Mas, ao mesmo tempo, ela não quer correr riscos no que se refere à China e, por isso, decidiu não vender a Taiwan todos os armamentos que seu governo desejava. Washington não venderá a Taipé submarinos nem aviões realmente sofisticados.
Todas essas questões poderiam criar problemas verdadeiramente sérios. Hoje esse ainda não é o caso, mas uma conjugação de fatores poderia irritar Pequim e levar os EUA e a China a serem obrigados a enfrentar um conflito real.
A questão do sistema de defesa antimísseis só faz aumentar a tensão, e alguns dirigentes chineses já acreditam que os EUA possam redirecionar alguns de seus mísseis para ter o território chinês como seu principal alvo.
Especula-se também que a China pretenda comprar mais armamentos da Rússia, o que ainda não foi confirmado. Parece que essa decisão só deverá ser tomada em julho. Indubitavelmente, tudo isso nos leva a pensar que há um potencial para que haja uma nova corrida armamentista, e não creio que o mundo precise de algo do gênero atualmente.
A administração de Bush parece determinada a construir o escudo antimísseis e pretende convencer a Otan a reformar ou a esquecer alguns dos mais importantes tratados de não-proliferação de armas nucleares. Essa posição denota a existência de um novo gênero de política externa nos EUA.
Parece-me que Bush quer ter sua própria política externa para deixar sua marca. Se ele está sendo influenciado por outras pessoas, não sei. Talvez o espectro do presidente Richard Nixon (1969-1974) o esteja assombrando. Mas Nixon tinha uma visão mais clara do conceito de multipolaridade.



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