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HISTÓRIA
Para Jonathan Spence, situação lembra litígios do passado, mas conjugação de fatores pode levar a conflito real
Historiador vê ameaça na crise EUA-China
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
O atual esfriamento das relações
diplomáticas entre a China e os
EUA não é uma surpresa. Ele lembra crises envolvendo os dois governos e litígios entre Pequim e
Londres ocorridos no passado.
Entretanto uma conjugação de fatores negativos que opusessem os
chineses aos americanos, como a
concretização do plano dos EUA
de construir um sistema de defesa
antimísseis, poderia provocar um
conflito verdadeiro, que teria consequências terríveis para todos.
A análise é do renomado historiador britânico Jonathan D.
Spence, diretor da Universidade
Yale (EUA), uma das maiores autoridades em China do mundo e
autor de "The Gate of Heavenly
Peace: The Chinese and Their Revolution 1895-1980" (o portão da
paz celestial: os chineses e sua revolução 1895-1980), "Em Busca
da China Moderna" e "Mao".
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - Como o sr. analisa as conturbadas relações diplomáticas entre a China e os EUA?
Jonathan D. Spence - Do ponto
de vista histórico, a situação atual
lembra os problemas de jurisdição e direitos de diferentes países
na China, que eram bastante comuns no final do século 18 e no
início do século 19.
Algumas dessas crises foram
bastante similares à situação atual
e envolviam os britânicos e os
americanos, que estavam desenvolvendo relações comerciais
dentro da China. Geralmente, essas relações causavam conflitos,
que levavam a "mortes acidentais", como a do piloto do caça
chinês que colidiu com o avião de
espionagem dos EUA em abril.
Essas mortes acidentais também se transformavam em problemas delicados, pois havia disputas sobre qual sistema legal tinha jurisdição para arbitrar as
questões e sobre uma possível
compensação a ser paga ao país
que se sentia prejudicado.
Assim, para um historiador, os
argumentos que Washington e
Pequim avançaram durante a crise diplomática recente são surpreendentemente familiares.
Folha - Qual é a dimensão do poder do presidente chinês, Jiang Zemin, atualmente?
Spence - Na China, não creio que
o poder seja hoje tão centralizado
quanto era no passado, com Mao
Tse-tung [líder da revolução chinesa de 1949" ou com seu sucessor, Deng Xiaoping.
Creio que, desde a morte de
Deng, ocorrida em 1997, haja um
grupo de líderes que tomam as
decisões. Nenhum dos dirigentes
chineses atuais segue a mesma
tradição revolucionária, pois eles
são de uma geração mais nova.
Esses líderes nasceram no fim
dos anos 20 ou na década de 30.
Assim, eles só se filiaram ao Partido Comunista durante a guerra
civil ou depois dela, num período
que vai de 1945 a 1950.
É verdade que, à época, ainda
era perigoso filiar-se ao partido,
porém isso não era o mesmo que
ser um líder revolucionário. Talvez seja por isso que eles tenham
tentado reconstruir o heroísmo
revolucionário na figura do piloto
morto na colisão com o EP-3E
americano, Wang Wei.
Para historiadores, o culto da
personalidade do piloto morto
lembra fatos ocorridos no passado recente da China. Portanto a liderança política chinesa atual tem
de discutir assuntos importantes
em grupo, talvez até com membros do Parlamento, e, certamente, com a cúpula militar.
Folha - Por quanto tempo o Partido Comunista conseguirá administrar o paradoxo de ter um sistema
político fechado e uma economia
que se abre cada vez mais para a
comunidade internacional?
Spence - Essa abertura econômica teve início em 1978, com Deng,
e, à época, já tínhamos dúvidas
sobre suas consequências políticas. Esse fenômeno aconteceu há
23 anos e, surpreendentemente,
ainda não gerou mudanças políticas substanciais.
O Partido Comunista chinês
tem tentado concentrar-se no aspecto econômico e "esquece" o lado político. Ele teve a possibilidade de assistir ao colapso da União
Soviética [1991" e está determinado a não permitir que disputas ou
mudanças políticas destruam as
estruturas do país.
A emergente classe média chinesa crê que, atualmente, ainda
seja mais prudente não desafiar o
sistema. Afinal, o poder central
poderia reagir drasticamente se
isso viesse a acontecer.
É curioso, mas os chineses têm o
direito de falar sobre o que bem
querem -podem criticar o governo e ridicularizar as estruturas
governamentais- na esfera privada. Contudo eles não podem fazer essas coisas em público. Há
uma enorme diferença na China
entre discussões privadas e manifestações públicas.
Quando Mao ainda era o líder
político do país, até as discussões
privadas eram extremamente perigosas, pois havia um sistema de
delação bastante ativo. Pessoas
delatavam seus amigos por acreditar que estivessem prestando
um serviço ao país. Hoje, porém,
esse sistema não mais existe.
Assim, as pessoas que são punidas ou enviadas a campos de trabalho atualmente são aquelas que
insistem em fazer declarações públicas criticando o sistema.
Não creio que venha a existir
pressão endógena para mudar o
regime, já que o perigo que correriam os agentes dessa pressão seria considerável. Isso para camponeses, membros da classe média ou pessoas que fazem parte da
nova "elite capitalista" chinesa.
Mesmo os filiados ao Partido Comunista correriam perigo se fizessem tais reivindicações.
Na China, ninguém quer ver o
país atravessar o mesmo tipo de
crise que assola a Rússia desde o
fim da URSS. Por isso o governo
tenta punir de modo exemplar casos de corrupção. Pequim também quer sufocar sociedades secretas, gangues, tráfico de drogas.
Seitas religiosas, como a Fa Lun
Gong, sofrem com isso porque o
governo as vê como uma força
que pode levar à desordem, não à
salvação espiritual. O governo
considera a Fa Lun Gong um movimento subversivo.
Os líderes políticos atuais nasceram num dos piores momentos
da história chinesa. Os primeiros
30 anos do século 20 foram terríveis para milhões de pessoas na
China. Havia fragmentação de
poder, líderes militares locais dominando parte do país.
Nas Províncias, o governo central perdia força. E, em Pequim,
ele já era bastante fraco. Assim, os
líderes políticos atuais querem
evitar que, mesmo de modo incipiente, algo desse gênero possa
ocorrer e estimulam um certo
conservadorismo, usando como
pretexto a continuidade política.
Folha - O sr. acredita que o plano
do novo premiê do Japão, Junichiro
Koizumi, de transformar as forças
de autodefesa do país num Exército possa desestabilizar a geopolítica do leste da Ásia?
Spence - A imagem do Japão na
China é ruim, as lembranças que
os chineses têm do Japão são terríveis. Isso já dura mais de um século, pois teve início na guerra de
1894, quando as ações japonesas
tiveram um impacto bastante negativo sobre a economia chinesa.
Na China, as lembranças históricas de atos dos japoneses são
mais negativas que as das ações
dos britânicos ou dos americanos.
O imperialismo japonês é descrito
na China como tendo sido intensamente agressivo e extraordinariamente violento.
Portanto a criação de um verdadeiro Exército ou, no futuro, de
uma Marinha do Japão teria um
efeito terrível no que se refere ao
equilíbrio de poder no leste da
Ásia. Se observarmos a evolução
geopolítica da região nos últimos
cem anos, veremos que isso é óbvio e que o temor dos chineses
não é infundado.
A Rússia não tem a força da
União Soviética, sua frota do Pacífico foi enfraquecida e suas bases
localizadas em Vladivostok foram
praticamente desativadas. Além
disso, os americanos deixaram
suas posições nas Filipinas. Com
tudo isso, a China ficou numa situação privilegiada nas águas do
leste asiático. Ora, o principal possível antagonista da China na região hoje é o Japão.
Tóquio poderá levar 20 ou 30
anos para estabelecer-se como
verdadeira potência geoestratégica regional. Contudo, sem dúvida, isso provocará um real nervosismo na China, o que é perfeitamente compreensível.
Há um antagonismo considerável entre os chineses e os japoneses. No século 20, as pessoas falavam de um movimento pan-asiático, porém não creio que a China
e o Japão se sentissem verdadeiramente ligados por causa do peso
histórico de suas relações diplomático-militares precedentes.
Folha - Como evoluirá a situação
de Taiwan? Ainda faz sentido Washington apoiar Taipé?
Spence - Geopoliticamente, a situação de Taiwan é extremamente volátil, instável. O presidente
dos EUA, George W. Bush, tem
dado um apoio mais claro a Taipé
e até permitiu que seu colega taiwanês, Chen Shui-bian, viesse aos
EUA. Isso faz com que o Partido
Comunista chinês fique ainda
mais irritado em relação a Taiwan, que Pequim considera uma
"Província rebelde".
Contudo, na verdade, quando
faz comentários favoráveis a Taiwan, Bush busca enviar uma
mensagem a nacionalistas republicanos americanos. Trata-se de
uma retórica que agradava aos republicanos dos anos 50 e 60, e
Bush está tentando ressuscitá-la.
Depois da Guerra da Coréia e
por algum tempo, os EUA foram
aliados incondicionais de Taiwan.
Assim, para muitas pessoas que
fazem política nos EUA hoje, a decisão de não "trair" Taiwan é muito importante, pois elas acreditam
que Taiwan sempre tenha sido
um verdadeiro aliado do país.
Folha - Esse pensamento não é
extemporâneo atualmente, uma
vez que a Guerra Fria já acabou?
Spence - Com certeza. Porém há
um certo sentimento de lealdade
no Congresso, e, logicamente, as
ligações comerciais entre americanos e taiwaneses ainda são importantes e desempenham um
papel crucial no processo de tomada de decisões do governo.
No que concerne a Taiwan, os
EUA, como outros países, não
querem parecer fracos diante da
comunidade internacional. Bill
Clinton foi bastante criticado por
isso. Ora, Bush, seus assessores e
seus conselheiros querem ter certeza de que não terão essa imagem. Para tanto, fazem afirmações taxativas a respeito de determinados assuntos controversos.
Parece que a nova administração americana decidiu utilizar a
questão de Taiwan para defender
essa posição. Mas, ao mesmo
tempo, ela não quer correr riscos
no que se refere à China e, por isso, decidiu não vender a Taiwan
todos os armamentos que seu governo desejava. Washington não
venderá a Taipé submarinos nem
aviões realmente sofisticados.
Todas essas questões poderiam
criar problemas verdadeiramente
sérios. Hoje esse ainda não é o caso, mas uma conjugação de fatores poderia irritar Pequim e levar
os EUA e a China a serem obrigados a enfrentar um conflito real.
A questão do sistema de defesa
antimísseis só faz aumentar a tensão, e alguns dirigentes chineses já
acreditam que os EUA possam redirecionar alguns de seus mísseis
para ter o território chinês como
seu principal alvo.
Especula-se também que a China pretenda comprar mais armamentos da Rússia, o que ainda
não foi confirmado. Parece que
essa decisão só deverá ser tomada
em julho. Indubitavelmente, tudo
isso nos leva a pensar que há um
potencial para que haja uma nova
corrida armamentista, e não creio
que o mundo precise de algo do
gênero atualmente.
A administração de Bush parece
determinada a construir o escudo
antimísseis e pretende convencer
a Otan a reformar ou a esquecer
alguns dos mais importantes tratados de não-proliferação de armas nucleares. Essa posição denota a existência de um novo gênero de política externa nos EUA.
Parece-me que Bush quer ter
sua própria política externa para
deixar sua marca. Se ele está sendo influenciado por outras pessoas, não sei. Talvez o espectro do
presidente Richard Nixon (1969-1974) o esteja assombrando. Mas
Nixon tinha uma visão mais clara
do conceito de multipolaridade.
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