São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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IRAQUE OCUPADO

Lawrence Korb, ex-secretário-assistente da Defesa, afirma que atual presidente não sabe admitir os próprios erros

Bush é assustador, diz secretário de Reagan

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A atual situação de segurança no Iraque mostra que o governo dos EUA não tinha um plano para transformar a vitória militar numa vitória política. Os planejadores político-militares americanos não ouviram o que vários especialistas lhes disseram antes da guerra porque pensam que nunca cometem erros. George W. Bush jamais admite que possa ter cometido erros, o que é assustador.
A análise é de Lawrence Korb, ex-secretário-assistente da Defesa dos EUA (1981-85, durante o primeiro mandato do ex-presidente Ronald Reagan), diretor do Council on Foreign Relations, um dos mais reputados "think tanks" dos EUA, e autor de, entre outros, "American National Security" (segurança nacional americana).
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
 

Folha - Como a situação de segurança no Iraque chegou a um ponto tão crítico quanto o atual?
Lawrence Korb -
Houve erros graves. O presidente Bush ignorou os conselhos de seus assessores militares, como os comandantes do Exército e da Marinha, que sabiam que a situação no terreno não seria nada do que vinha sendo dito em Washington antes da guerra. Trata-se de oficiais militares que estiveram no Vietnã, na Bósnia, no Haiti ou na Somália e que têm grande experiência em situações de conflito urbano.
Basicamente, eles disseram a Bush que os EUA precisariam de centenas de milhares de soldados no Iraque para estabilizar a situação e que os americanos não seriam vistos como libertadores pela população local, mas como ocupantes. O problema é que o governo decidiu enviar apenas cerca de 130 mil militares ao Iraque e, com isso, não conseguiu controlar a situação de segurança no país. Ademais, ficou impossível vigiar as fronteiras para impedir a entrada de estrangeiros.
O segundo erro grave foi desmantelar a força policial e o Exército iraquianos. Se a maioria dos integrantes dessas forças tivesse sido mantida pela coalizão, a situação já estaria melhor. Assim, a coalizão teve de criar uma organização para cuidar da segurança, mas ela não foi bem treinada e já teve de entrar em ação. Com isso, a nova força iraquiana ficou vulnerável à infiltração de insurgentes, o que agravou ainda mais o problema de segurança.
Sabemos, por exemplo, que policiais iraquianos mataram alguns americanos em março e que, em vários focos de insurgência, os iraquianos entregaram suas armas aos combatentes que atacavam as forças americanas.

Folha - Isso significa que Bush deu ouvidos a seu vice, Dick Cheney, ao secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e ao vice-secretário da Defesa, Paul Wolfowitz, não é?
Korb -
Sem dúvida, o que foi um erro. Em vez de acreditar no que lhe diziam seus assessores militares, Bush preferiu ouvir o que dizia Ahmed Chalabi [líder opositor iraquiano], que insistia em que os americanos seriam vistos como libertadores pela população local.
Em 2 de maio do ano passado, o Pentágono, que é comandado por Rumsfeld, afirmou que, até o final do verão setentrional de 2003, o número de soldados americanos no Iraque poderia cair para cerca de 30 mil. Indubitavelmente, isso foi um terrível erro de planejamento militar, e o atual governo está pagando alto por isso.

Folha - Seria, portanto, justo dizer que essa ala da administração, que é liderada por Cheney, vem perdendo força por conta dos erros de planejamento para o pós-guerra?
Korb -
Creio que sim. Afinal, se eles ainda tivessem a força de que dispunham no ano passado, as tropas americanas já teriam desembarcado na Síria há muito tempo. É claro que o desejo de afirmação militar dos EUA existente no pensamento dessas pessoas não foi saciado pela invasão do Iraque. Acredito que esse grupo tenha perdido poder nos círculos de tomada de decisão e que o presidente esteja buscando dar um toque mais multilateralista e realista à sua política externa.

Folha - O sr. crê, então, que o governo americano realmente tenha a intenção de dar mais poder à ONU e a seus aliados estrangeiros, preparando o caminho para diminuir a presença americana no Iraque?
Korb -
Sem dúvida. Em suas últimas intervenções públicas sobre o tema, Bush vem dando a entender que deixará [Lakhdar] Brahimi [chefe da missão da ONU no Iraque] e [o aiatolá Ali al] Sistani [principal líder da maioria xiita iraquiana] decidirem quem governará o país após a entrega do poder político aos iraquianos [que está marcada para o final de junho deste ano].
No que concerne à retirada das tropas americanas do Iraque, todavia, a questão é mais complexa. Os EUA querem mais ajuda internacional no Iraque por causa do peso econômico-militar da ocupação. Entretanto as tropas não poderão deixar o país tão cedo, pois a situação poderia tornar-se caótica se isso ocorresse.

Folha - A mudança de atitude do governo tem relação com a eleição presidencial de novembro?
Korb -
Indubitavelmente, foi por isso que a administração decidiu entregar o poder político aos iraquianos em 30 de junho. Os planejadores político-militares americanos pensaram que poderiam reduzir o número de soldados no Iraque, pois o país já deveria ter algumas centenas de milhares de soldados e de policiais.
Tudo isso seria muito bem-visto pela imprensa americana e deveria ser lucrativo eleitoralmente. O governo planejava cortar para 105 mil o número de militares engajados nas operações no Iraque, mas, obviamente, isso não será possível por conta do caos que reina no país nos últimos tempos.

Folha - Essa linha de pensamento era realista em termos práticos?
Korb -
Ela não era realista dentro do período imaginado. Ou seja, não é plausível imaginar que seja possível ter um governo iraquiano autônomo a partir de 1º de julho. Se a administração americana decidir manter essa data, a entrega de poder será muito mais simbólica do que verdadeira.
Ademais, isso poderá agravar ainda mais a situação, já que uma devolução parcial da soberania ao país fará com que o novo governo iraquiano seja visto pela população como ilegítimo, como um fantoche dos EUA. Com isso, a comunidade internacional também deverá passar a duvidar da seriedade do esforço americano de reconstrução do Iraque.

Folha - Como um movimento de insurgência como o iraquiano deve ser combatido?
Korb -
Primeiro, um número bem mais elevado de militares é necessário no Iraque. Segundo, as forças internacionais, que são lideradas pelos EUA, precisam de mais tempo para treinar os policiais e militares iraquianos. Se a coalizão puder ser paciente e estiver pronta para arcar com os custos de tal esforço, será possível combater a insurgência.
Na prática, uma coisa é certa: os EUA não poderão retirar seus militares do Iraque tão cedo. Mesmo que [John] Kerry [virtual candidato democrata à Presidência dos EUA] seja eleito, os americanos não poderão sair do Iraque, visto que todos sabem que o preço de uma retirada de tropas prematura seria muito alto no que tange aos interesses de segurança dos EUA. Os soldados americanos terão de ficar quase uma década no país para poder estabilizar a situação.

Folha - O sr. acredita que seja factível impor a democracia a um país como o Iraque?
Korb -
Não, isso é impossível a curto prazo. O objetivo americano deve ser estabilizar o Iraque a longo prazo, não democratizá-lo. Afinal, isso é muito mais complexo. A constituição de instituições estáveis e confiáveis leva tempo.
O que ocorreria, por exemplo, se o líder xiita radical Moqtada al Sadr fosse eleito presidente do Iraque numa eleição direta? E se ele quisesse criar uma teocracia de estilo iraniano no país? Os EUA tentariam impedi-lo? Isso seria um pesadelo para os EUA.
É por isso que penso que a idéia de democratizar o Iraque não é realista. Seria ótimo se o país pudesse abraçar as idéias democráticas rapidamente, contudo não creio que isso seja exeqüível. Os americanos devem buscar estabilizar a situação para, em seguida, começar a criar as instituições necessárias para que uma semente de regime democrático possa ser plantada no país. O problema é que é mais fácil falar sobre o tema do que pôr a teoria em prática.

Folha - É verdade que o governo Bush tinha uma obsessão pela queda do ex-ditador Saddam Hussein mesmo antes do 11 de Setembro?
Korb -
Indubitavelmente. Em 1997, quando lançaram seu Projeto para o Novo Século Americano, Cheney, Rumsfeld, Wolfowitz, [Douglas] Feith [subsecretário da Defesa] e [Richard] Perle [ex-conselheiro do Pentágono] disseram que queriam livrar-se de Saddam. Paul O'Neill [ex-secretário do Tesouro de Bush], que é um republicano fiel, afirmou, em seu livro, que a queda de Saddam era um dos principais objetivos do atual governo desde o início.

Folha - E quanto à Síria ou à Coréia do Norte?
Korb -
Parece-me claro que muitos dos assessores de Bush gostariam de ter invadido a Síria se a situação no Iraque não estivesse tão ruim. A situação norte-coreana é complicada, visto que os custos dessa ação seriam muito altos. Alguns conselheiros de Bush gostariam de atacar a Coréia do Norte porque pensam que uma política externa forte apoiada pela força militar pode ajudar um país a atingir seus objetivos em geral.

Folha - Não é estranho que Bush lidere uma cruzada contra ditaduras e, ao mesmo tempo, mantenha laços estreitos com ditadores, como Pervez Musharraf [Paquistão]?
Korb -
Sem dúvida, é por conta disso que ele acaba criando problemas para seu governo. Quando diz que a democracia é o verdadeiro objetivo da cruzada americana, pois, com ela, as pessoas serão livres, Bush esquece que, no mundo real, ele tem de lidar com Musharraf, com [Hosni] Mubarak [presidente do Egito], com os russos e com os chineses. Afinal, a democracia não existe verdadeiramente nesses países.
Bush deve entender que, como presidente da maior potência global, tem de manter contato com muita gente cujo histórico não é motivo de orgulho. É assim que as coisas acontecem no mundo político. O problema é o presidente dizer uma coisa e fazer outra.
Essa tentativa de dar um caráter moral à política externa americana não convence mais ninguém. E ainda mais grave é o fato de ele não reconhecer que age dessa forma, confundindo moralidade com certeza moral.

Folha - Bush realmente acredita no que diz a esse respeito?
Korb -
Sim, e isso é seu aspecto mais assustador. Uma coisa é um líder dizer algo pouco ou nada crível porque isso é necessário politicamente, outra é ele realmente acreditar no que diz. Bush não é estúpido e tem um senso político aguçado. Contudo ele não é uma pessoa de raciocínio muito aberto ou sofisticado. Gosta de ver tudo em preto ou em branco e se esquece da existência dos inúmeros matizes de cinza.
O presidente busca soluções simples para problemas complexos. Infelizmente, todavia, isso não dá certo em política externa. Por exemplo, durante a Guerra Fria, os EUA cooperaram com os militares argentinos ou brasileiros porque isso fazia parte de seus interesses nacionais. Ora, por que a situação seria diferente agora?

Folha - O caos iraquiano atual demonstra que a guerra foi um erro?
Korb -
A situação atual mostra que o governo não tinha um plano para transformar a vitória militar numa vitória política. Os planejadores político-militares dos EUA não ouviram o que vários especialistas lhes disseram antes da guerra porque pensam que nunca cometem erros. Bush sempre se recusa a admitir que possa ter cometido erros, o que é assustador.
Lembro que, no tempo em que trabalhava com o ex-presidente Reagan, este reconheceu rapidamente que havia cometido um erro ao enviar marines ao Líbano [centenas morreram no país num atentado com um caminhão-bomba, em 1983]. Mesmo assim, ele foi reeleito. É uma grande falha não admitir os próprios erros.


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