São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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ENTREVISTA

Ex-presidente sugere que candidato evite questões polarizadoras postas por Bush para vencer com "margem razoável"

Kerry deve focar valores, aconselha Clinton

PHILIP STEPHENS
DO "FINANCIAL TIMES"

O senador John Kerry, virtual candidato democrata à Presidência dos EUA, deve combater os esforços republicanos para fazer da eleição um debate sobre o casamento gay e outras "questões culturais", alertou o ex-presidente Bill Clinton (1993-2001).
Em vez disso, disse Clinton em entrevista ao "Financial Times", Kerry deve travar uma campanha baseada em valores e concentrada na saúde, educação e combate ao crime. Se mantiver essa posição, o democrata pode vencer por "uma margem bem razoável".
Clinton, que está em viagem pela Europa para promover sua autobiografia, ofereceu caloroso endosso à candidatura de Kerry e descartou sugestões de que ele tenha derivado do passado liberal do partido, descrevendo-o como um "novo democrata" dotado de visão para o século 21. O ex-presidente também elogiou John Edwards, o candidato a vice, e reconheceu nele um futuro rival às aspirações presidenciais de sua mulher, Hillary. Leia os principais trechos da entrevista.

 

Pergunta - John Kerry conseguirá conquistar a Presidência? Ele é um democrata à maneira de Clinton?
Bill Clinton -
Se John Kerry é um "novo democrata"? Tenho certeza que sim. Ele vem sendo um membro iconoclasta do partido, difícil de enquadrar em qualquer definição. É liberal, socialmente, pois apóia os direitos homossexuais, os direitos civis e os direitos femininos. Tem um histórico forte quanto às questões ambientais. Creio que todas as provas o favoreçam. Em muitas questões cruciais, ele se alinhou à nova abordagem que adotei. Por isso, acredito que seja possível dizer -não apenas por causa de sua experiência no Vietnã, mas também por ele ter trabalhado, no meu governo, para modernizar as forças armadas, esse tipo de coisa- que ele seja claramente um "novo democrata". Kerry tem muitas idéias interessantes sobre saúde e educação, e acredito que, se essas coisas tiverem destaque em sua campanha, as pessoas o verão como um legítimo herdeiro da filosofia dos "novos democratas".

Pergunta - E Edwards?
Clinton -
Acho que Edwards segue o mesmo modelo. As posições dos dois eram um pouco diferentes durante as primárias, mas Edwards não está na política há tanto tempo quanto Kerry.

Pergunta - Quando as pessoas dizem que ele é o novo Clinton, o senhor se sente lisonjeado?
Clinton -
Eu gosto muito dele, acredito que seja muito inteligente, articulado. Seu coração bate em compasso com os dos cidadãos comuns dos EUA. Acredito também que ele ainda esteja em processo de desenvolvimento como líder político e que seu potencial seja ilimitado. Por isso, acho que a comparação é muito lisonjeira.

Pergunta - Em 1992, a economia definiu a eleição. Agora estamos em uma luta política diferente, em que há uma disputa cultural sobre a natureza da sociedade...
Clinton -
Concordo que a economia tornou possível a minha vitória em 1992, mas acho que é simplificar demais dizer que venci por causa da economia. Sem a depressão econômica, eu talvez não tivesse conseguido montar uma campanha convincente. Mas acredito que a minha vitória se deva tanto a novas idéias quanto aos valores básicos que defendia.
O tema da minha campanha era oportunidade, responsabilidade, comunidade, e a pauta de valores na eleição de 92 era muito importante. Eu defendia que ressaltássemos as nossas responsabilidades mútuas, minha mensagem dava muita importância aos valores.
Quando venci, trabalhamos muito com as comunidades. Convidei para o governo pessoas que não concordavam comigo quanto ao aborto, quanto aos direitos homossexuais, e pedi que me ajudassem a reduzir a pobreza e a combater os problemas externos, a levar assistência às pessoas da Bósnia e coisas assim. Acredito que os democratas jamais devam abandonar sua pauta baseada em valores, que foi uma parte importante da minha Presidência.
Simplificar demais o debate é sempre uma tentação, dizer que os democratas tratam de questões tradicionais de governo e os republicanos tratam de valores. Mas seremos derrotados se o fizermos.

Pergunta - Onde os EUA estão em termos da batalha entre valores conservadores e liberais?
Clinton -
Acredito que exista, de fato, uma profunda divisão, e que a situação seja delicada. Por exemplo, a maior parte dos americanos se opõe ao casamento gay, mas a maior parte dos americanos se opõe, igualmente, a uma emenda constitucional que o proíba. Os republicanos tentarão transformar o pleito em um debate sobre o casamento gay, um tema que gera sentimentos contraditórios nas pessoas. O mesmo se aplica ao aborto. A coisa mais importante para Kerry é garantir que as pessoas compreendam as escolhas e decisões que um presidente tem de fazer, e como elas afetam sua vida e seus valores.
O que o presidente Bush tentará fazer, creio, é transformar a eleição em um debate mais abstrato, a favor ou contra o casamento gay, a favor ou contra o aborto, a favor ou contra o controle de armas, todo esse tipo de questão clássica, a favor ou contra os cortes de impostos. Se a questão girar em torno de escolhas abstratas em lugar de tratar das decisões que os presidentes tomam na prática, ele tem a chance de dividir o eleitorado ao meio e talvez vencer com base nas medidas de segurança. Na verdade, a decisão deveria ser tomada quanto a educação, saúde, crime, coisas assim. O que um presidente faz e a maneira pela qual os valores americanos tradicionais são manifestados em suas decisões práticas, esse é o caminho para a vitória de Kerry, e por uma margem bem razoável.

Pergunta - Que papel a política externa tem nessa equação?
Clinton -
Muito maior do que seria o caso normalmente. E creio que os efeitos sobre o presidente sejam ambivalentes. Acredito que haja um consenso de que a guerra contra o terror é algo que prosseguirá indefinidamente, mas, com base nessa teoria, teríamos de ter a mesma pessoa no poder para sempre. Veja há quanto tempo a Europa convive com isso.
Creio que, em certo sentido, a questão seja relativamente nova para nós e provavelmente beneficiará o presidente. Mas, por outro lado, há a questão da CIA, a transferência da ênfase da Al Qaeda para a obsessão com o Iraque; e há o fato de Kerry ter um histórico militar irretocável e sempre ter tratado com seriedade das questões de segurança nacional.
Acredito também que os americanos se preocupem mais com esse assunto no momento do que fariam normalmente e penso que o fato de que o mundo nos considere unilaterais demais pode ter alguma influência nos EUA.
Em termos gerais, creio que a posição democrata é a de que sempre que possível deveríamos cooperar com nossos aliados, reservando o direito de agir por conta própria caso seja inevitável. A posição republicana vem sendo a de que, já que somos a única superpotência militar, econômica e política do mundo, devemos fazer o que consideramos certo sempre que possível e cooperarmos apenas quando precisarmos. Esse debate será importante nessa eleição, e minha impressão é que os democratas têm uma boa chance de vencer a disputa.

Pergunta - A Guerra do Iraque deveria ter sido travada?
Clinton -
O que ficou provado é que o erro, na época, foi não termos permitido que os inspetores de desarmamento da ONU concluíssem o trabalho. Se Hans Blix tivesse terminado o trabalho e dito duas coisas, que não encontrou provas de armas de destruição em massa e que Saddam Hussein basicamente estava cumprindo as ordens de desarmamento, talvez pudéssemos ter enviado aqueles 130 mil soldados para o Afeganistão e capturado Bin Laden e seus principais auxiliares. O mundo seria um lugar muito mais seguro.
Caso Blix tivesse localizado armas e garantido sua destruição, afirmando que Saddam estava cooperando, poderíamos ter feito a mesma coisa. Se Blix tivesse recebido as semanas adicionais que vinha solicitando e dissesse que Saddam não estava cooperando, que era impossível verificar a situação das armas por falta de cooperação, eu teria apoiado um esforço internacional para removê-lo do poder, mesmo que depois surgisse a informação de que ele não tinha armas proibidas.
Pode-se atribuir a culpa pela situação à CIA, mas não foi a CIA que alegou que existia um vínculo entre Saddam e a Al Qaeda. A CIA afirmou claramente que não havia indícios disso. A alegação foi feita por nosso governo, sem base, e não se pode culpar a CIA por exagerar o problema nuclear.
Falemos dos serviços de inteligência americano e britânico. O desempenho deles na Guerra Fria foi brilhante. Mas a Guerra Fria acabou e tivemos de obter informações sobre uma série de outras coisas em lugares onde não tínhamos muitos espiões, onde não podíamos confiar nas pessoas com as quais estávamos em contato, onde não tínhamos pessoal que falasse o idioma e onde as pessoas talvez estivessem recebendo informações, como no caso do Iraque, de fontes escusas, que esperavam suceder a Saddam. Tudo isso precisa ser corrigido.

Pergunta - O senhor acha que o premiê britânico, Tony Blair, deveria ter dito que não entraria em guerra a não ser que Blix tivesse uma nova oportunidade?
Clinton -
Foi isso que Blair tentou fazer. Pode-se discordar dele, mas é preciso que haja justiça. Blair acreditava que o ideal fosse ir à ONU e dar a Blix o tempo de que ele precisava e determinar se agiríamos ou não com base no relatório de Blix. Essa era a posição de Blair, não a de Bush. Mas o premiê foi solapado pela posição francesa e alemã, que era a de que, mesmo que Blix voltasse dizendo que os iraquianos não estavam cooperando e que não sabia se eles tinham ou não armas, ainda assim França e Alemanha não votariam pela remoção de Saddam.
Com isso, Blair achou que fosse preciso recuar para conseguir o apoio da maioria do Conselho de Segurança. Para tanto, precisava dos votos do Chile e do México. Mas, a essa altura, os demais países estavam alienados em razão da posição dos americanos e acreditavam num veto da França ou da Rússia e portanto decidiram não apoiar a idéia britânica. Tony ficou na situação de ter assumido a posição correta, mas sem o apoio de ninguém.
Com isso só lhe restavam duas alternativas mutuamente incompatíveis. Vemos a história de maneira retrospectiva, mas a vivemos de maneira prospectiva -naquele momento, eu mesmo acreditava que existissem estoques não registrados de material para armas químicas e biológicas, o que não quer dizer que Saddam dispusesse de armas.
É possível dizer que Blair cometeu um erro, mas o caso dos EUA não é o mesmo. A posição americana era a de que já tínhamos autorização da ONU e cabia a nós decidirmos quando Blix encerraria seu trabalho, pois as armas não eram o verdadeiro motivo para a invasão do Iraque e não nos incomodávamos com armas de destruição em massa. Acreditávamos que ter uma democracia no Iraque fosse bom, que isso abalaria os regimes árabes, os regimes autoritários, e lançaria uma nova onda de reformas no Oriente Médio, daria a Israel mais confiança para fazer as pazes com os palestinos, logo, mais influência. Essa era a teoria completa Powell-Wolfowitz [do secretário de Estado, Colin Powell, e do subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz].

Pergunta - Não é tão ruim...
Clinton -
Não, e ainda pode funcionar. É possível discordar da decisão de Blair, mas é importante não vê-la com base no que sabemos agora. Temos de analisar com base no que ele sabia àquela altura e nas alternativas que ele tinha. Blair ficou numa tremenda enrascada quando os demais europeus não apoiaram sua posição, que teria dado a Blix tempo para concluir o trabalho e poderia ter evitado a ação militar no Iraque.


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