Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARGENTINA
Para o Prêmio Nobel da Paz de 80, terrorismo de Estado praticado por militares e guerrilha são crimes diferentes
Problema da América Latina é impunidade, diz Esquivel
ELAINE COTTA
DE BUENOS AIRES
A Argentina vive hoje uma nova
fase, mas ainda sofre com o problema da impunidade, apesar de
recentes medidas que visam
apressar o julgamento de militares que violaram direitos humanos na última ditadura (1976-1983). A opinião é do arquiteto e
escultor argentino Adolfo Pérez
Esquivel, 72, Prêmio Nobel da Paz
de 1980, para quem o problema
não atinge somente o país vizinho.
Para ele, a impunidade é o grande gargalo do desenvolvimento da
América Latina. Em entrevista à
Folha na última sexta-feira, o presidente da associação Serviço de
Paz e Justiça falou sobre a ofensiva
do presidente argentino, Néstor
Kirchner, para renovar as instituições do país, da prisão de dois ex-líderes montoneros -grupo
guerrilheiro que fazia oposição à
ditadura- e do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva.
Folha - Como o sr. vê a retomada
de processos contra os militares?
Adolfo Pérez Esquivel - Eu acredito que houve mudanças de decisões políticas do novo governo,
que, por fim, decidiu enfrentar
uma situação que os outros não
quiseram encarar.
Folha - O sr. vê isso como um
avanço?
Esquivel - Sim. Mas ainda temos
dificuldades no Poder Judiciário,
que está muito viciado e dependente do poder político. Estamos
no meio de um processo que levará tempo. Já conseguimos que a
Câmara dos Deputados declarasse a nulidade das leis de anistia.
Agora, temos de esperar o Senado
e a Corte Suprema de Justiça.
Folha - E o sr. acha que essas leis
deixarão realmente de vigorar?
Esquivel - Tudo depende da relação entre força política e pressão
social. O Senado tem uma maioria
menemista que pode atrasar as
negociações, além do bloco radical [UCR - União Cívica Radical],
que é contrário à nulidade. Estamos no meio de um processo
aberto e inacabado.
Folha - Mas a validade legal da
nulidade é questionada?
Esquivel - Sim. Isso é um problema jurídico. Mas a Suprema Corte
tem poder para acabar com elas. É
isso que buscamos, uma forma de
combater a impunidade. Não é
possível reconstruir um processo
democrático sobre a impunidade.
É preciso recuperar as instituições
para que o Estado funcione corretamente.
Folha - Então o principal problema é a impunidade?
Esquivel - A impunidade não se
restringe apenas ao caso dos militares que violaram os direitos humanos e ainda não pagaram por
seus crimes. Existe a polícia do gatilho fácil, que mata e depois pergunta, e os políticos que saquearam o país, roubaram bilhões de
pesos e que estão livres. É preciso
acabar com a impunidade em todos os setores.
Folha - O sr. acredita que a Argentina terá de recorrer às extradições
ou conseguirá julgar os militares no
país?
Esquivel - Se as leis não forem extintas, haverá extradições. A mim
interessaria que os julgamentos
fossem aqui. Isso ajudaria a revitalizar a Justiça argentina. Mas, se
não for possível, que sejam pelas
extradições.
Folha - Alguns setores da esquerda dizem que a prisão dos ex-líderes montoneros na semana passada foi uma forma de amenizar os
ânimos das Forças Armadas...
Esquivel - É preciso ter cuidado
com o que se chamou durante
muitos anos, na Argentina, de
"política dos dois demônios". Há
quem defenda que o que aconteceu durante a ditadura foi uma
guerra entre governo e guerrilheiros. Isso é errado. São delitos de
graus muito diferentes. Os ex-montoneros que cometeram crimes devem ser julgados, claro.
Mas esses crimes nada têm a ver
com o terrorismo de Estado aplicado no país. Quem viola direitos
humanos é o Estado. E o que
aconteceu na Argentina não foi
uma guerra. Foi uma repressão
sistemática em todos os setores da
sociedade. As guerrilhas deveriam
ter sido contidas por mecanismos
legais.
Folha - Mas as prisões acalmaram
os militares...
Esquivel - Sim. Pode ser uma forma de apaziguar os ânimos, buscar equilíbrio. Alguns querem defender os ex-guerrilheiros. O que
temos de fazer é priorizar a justiça.
Se há prova de que são culpados,
que sejam punidos. O que queremos, mais uma vez, é acabar com
a impunidade. Mas há uma diferença entre a ação do Estado contra direitos humanos e a ação de
um grupo de delinquentes. São
responsabilidades diferentes que
a Justiça terá de determinar.
Folha - Alguma vez o sr. perdeu a
esperança?
Esquivel - Sempre tive esperança. Caso contrário não estaria trabalhando por isso até hoje. É uma
luta antiga. Todos os dias me canso. Mas temos de prosseguir. Por
exemplo, não foi casual o problema que Kirchner teve com o helicóptero recentemente.
Folha - O sr. acha que pode ter sido uma tentativa de sabotagem?
Esquivel - Temos de enfrentar essa realidade sem ter medo. Existem setores que continuam reivindicando a ditadura militar. São
mafiosos, assassinos. Não estamos lidando com gente que tenha
valores, ética e responsabilidade.
Eles mataram 30 mil pessoas na
ditadura, torturaram, estupraram, sequestraram crianças e seguem com a mesma mentalidade.
Temos de enfrentar máfias. Não
podemos nos intimidar com o
medo. Orgulha-nos ter um presidente como Kirchner, que enfrenta essa situação.
Folha - Qual seria o avanço mais
importante para o país?
Esquivel - Estamos num processo de transformação social, política, cultural e econômica. Se esse
governo conseguir restabelecer a
credibilidade e a funcionalidade
das instituições do Estado, já será
uma grande revolução. Temos de
ter cuidado para que os governantes da América Latina não sejam
domesticados pelo mercado.
Folha - E que avaliação o sr. faz do
governo Lula?
Esquivel - - Cito aqui o meu amigo Frei Betto: "Lula chegou ao governo, mas não ao poder". Muitas
vezes, governo é uma coisa, e poder, outra. O sistema é perverso
para os governantes, e isso vale
para o Lula, que avançou com a
proposta de integração da América Latina e ao olhar para a situação
social. Mas tem uma herança maldita. O Brasil é hoje um elefante
numa cristaleira. É preciso mover-se com cuidado. Se, dentro de
um ano, Lula não mudar nada, aí
sim poderemos dizer que já está
domesticado.
Texto Anterior: Episódio pode melhorar imagem de Bloomberg Próximo Texto: Frase Índice
|